terça-feira, 9 de agosto de 2016
Plano de Ação.
Da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
V - Congresso constituinte (59 a 66).
Parte V do Preâmbulo da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
59. Além do pacote Sarney e demais reformas econômicas e sociais anunciadas ou implantadas pelo novo regime, a conjuntura atual apresenta uma particularidade extremamente significativa: o processo constituinte, que, de bandeira e reivindicação de forças democráticas desde meados da década de 60, agora se transformou, nas mãos da Nova República, num projeto de consolidação da hegemonia burguesa sobre e contra o movimento popular. Em 1985, a proposta pela qual o PT e várias forças políticas lutavam era a da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, autônoma, independente do Poder Executivo e do Poder Legislativo, soberana, democrática e de ampla consulta popular. Mas essa proposta foi derrotada pela maioria conservadora da Aliança Democrática e, no seu lugar, está sendo convocado um Congresso Constituinte, de poderes e âmbito restritos e limitados, em que a burguesia e as forças políticas conservadoras têm grandes chances de obter maioria.
60. Apesar de suas limitações, o Congresso Constituinte será um momento importante do processo de transição política que ocorre no País. Isso por duas razões essenciais: para a burguesia, trata-se de constituir a base de legitimidade política dos seus projetos de transição conservadora; para os trabalhadores e a massa dos explorados pelo sistema capitalista, trata-se não só de deslegitimar os projetos político-institucionais da Aliança Democrática, como de fazer avançar a luta por uma concepção alternativa de organização econômica e social e de democracia; ou seja, uma concepção que exprima os interesses dos trabalhadores e a sua decisão de manter a sua independência de classe no processo de transição.
61. Apesar de sua forma antidemocrática, que procura usurpar a soberania popular, o Congresso Constituinte vai ter de tocar grandes questões econômicas, sociais e políticas do País. Como a burguesia deseja legitimar o seu próprio sistema econômico, social e político, [reestruturando] o poder do Estado em função da melhor forma de fazer prevalecerem seus interesses de classe, será inevitável, diante do caos jurídico e político herdado do período da Ditadura, que os grupos dominantes tenham de enfrentar os desafios colocados pela crise política crônica, que vem desde os tempos dos governos militares. Para alcançar tais objetivos – e legitimar o seu projeto conservador de democracia – a burguesia e os demais grupos dominantes se vêem obrigados a buscar o apoio e o reconhecimento das massas populares e, por isso mesmo, não podem fechar todos os canais de intervenção popular na Constituinte, o que permite aos trabalhadores lutarem pelo seu próprio projeto político e de sociedade.
62. É convivendo com sua contradição, entre legitimar para as massas populares seu projeto exclusivista de classe e abrir espaços para os mesmos nomes disputarem os seus projetos políticos, que apontam na direção de uma efetiva democratização da sociedade e do Estado, que a burguesia também procura estabelecer mecanismos de limitação da participação popular. A substituição da tentativa de convocar Assembléia Nacional Constituinte com ampla participação, capaz de assegurar a soberania popular, pelo Congresso Constituinte limitado é o exemplo mais significativo que as classes dominantes poderiam ter dado de sua ideia de que a participação popular maciça poderia vir a resultar na elaboração de uma Constituição que rompesse com os limites da transição conservadora.
63. Todos sabem que os direitos dos trabalhadores não serão assegurados apenas com garantias constitucionais e legais. No entanto, a experiência das últimas décadas de luta nos mostra, também, que inscrever direitos e garantias na Constituição é uma forma de assegurar que a luta pela implementação e pela sua realização possam crescer e se ampliar ainda mais. Talvez o melhor exemplo seja o do direito de greve. Nos últimos anos, os trabalhadores não precisaram esperar que o efetivo direito de greve estivesse reconhecido na Constituição para se organizarem e lutarem. O ciclo de greves dos últimos dez anos mostra que a prática combativa rompe muitos obstáculos. No entanto, todos sabemos que, reconhecidos os direitos de greve e a autonomia sindical, se torna mais difícil que ocorram intervenções do Estado nos sindicatos e, como tantas vezes aconteceu durante a Ditadura, que o avanço do próprio movimento sindical seja dificultado com intervenções, cassações e medidas punitivas.
64. Essas contradições da luta política apontam para a necessidade de os trabalhadores intervirem de forma decisiva e vigorosa no processo constituinte, seja para ampliá-lo, com a revogação do chamado entulho autoritário, como LSN [Lei de Segurança Nacional], Lei de Greve, Lei de Imprensa etc., [seja na] abertura da legislação eleitoral, em particular no que diz respeito à representação municipal, para incluírem na futura Constituição muitas das suas conquistas e direitos, aprofundando, assim, as brechas no Estado e no capitalismo. Torna-se imprescindível, portanto, que o crescimento popular dos trabalhadores do campo e da cidade esteja politicamente preparado para intervir e marcar [a] transição com os seus interesses, as suas perspectivas e as soluções práticas que permitem alcançá-las.
65. Não cabe, portanto, a tese de não participação no Congresso Constituinte, mas, muito pelo contrário, ampla disposição de luta e de mobilização para:
66. Intimamente ligada à questão do processo constituinte está, também, a eleição de governadores, senadores e deputados estaduais. As questões específicas da campanha eleitoral de 1986 estão contidas no Documento Eleitoral Básico, aprovado no IV Encontro Nacional do PT. Aqui, neste Plano de Ação Política e Organizativa, são colocadas algumas questões gerais, que devem servir de orientação, tanto para programas de governo dos eleitos pelo PT quanto para as ações políticas de oposição aos eleitos de outros partidos.
59. Além do pacote Sarney e demais reformas econômicas e sociais anunciadas ou implantadas pelo novo regime, a conjuntura atual apresenta uma particularidade extremamente significativa: o processo constituinte, que, de bandeira e reivindicação de forças democráticas desde meados da década de 60, agora se transformou, nas mãos da Nova República, num projeto de consolidação da hegemonia burguesa sobre e contra o movimento popular. Em 1985, a proposta pela qual o PT e várias forças políticas lutavam era a da convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, autônoma, independente do Poder Executivo e do Poder Legislativo, soberana, democrática e de ampla consulta popular. Mas essa proposta foi derrotada pela maioria conservadora da Aliança Democrática e, no seu lugar, está sendo convocado um Congresso Constituinte, de poderes e âmbito restritos e limitados, em que a burguesia e as forças políticas conservadoras têm grandes chances de obter maioria.
60. Apesar de suas limitações, o Congresso Constituinte será um momento importante do processo de transição política que ocorre no País. Isso por duas razões essenciais: para a burguesia, trata-se de constituir a base de legitimidade política dos seus projetos de transição conservadora; para os trabalhadores e a massa dos explorados pelo sistema capitalista, trata-se não só de deslegitimar os projetos político-institucionais da Aliança Democrática, como de fazer avançar a luta por uma concepção alternativa de organização econômica e social e de democracia; ou seja, uma concepção que exprima os interesses dos trabalhadores e a sua decisão de manter a sua independência de classe no processo de transição.
61. Apesar de sua forma antidemocrática, que procura usurpar a soberania popular, o Congresso Constituinte vai ter de tocar grandes questões econômicas, sociais e políticas do País. Como a burguesia deseja legitimar o seu próprio sistema econômico, social e político, [reestruturando] o poder do Estado em função da melhor forma de fazer prevalecerem seus interesses de classe, será inevitável, diante do caos jurídico e político herdado do período da Ditadura, que os grupos dominantes tenham de enfrentar os desafios colocados pela crise política crônica, que vem desde os tempos dos governos militares. Para alcançar tais objetivos – e legitimar o seu projeto conservador de democracia – a burguesia e os demais grupos dominantes se vêem obrigados a buscar o apoio e o reconhecimento das massas populares e, por isso mesmo, não podem fechar todos os canais de intervenção popular na Constituinte, o que permite aos trabalhadores lutarem pelo seu próprio projeto político e de sociedade.
62. É convivendo com sua contradição, entre legitimar para as massas populares seu projeto exclusivista de classe e abrir espaços para os mesmos nomes disputarem os seus projetos políticos, que apontam na direção de uma efetiva democratização da sociedade e do Estado, que a burguesia também procura estabelecer mecanismos de limitação da participação popular. A substituição da tentativa de convocar Assembléia Nacional Constituinte com ampla participação, capaz de assegurar a soberania popular, pelo Congresso Constituinte limitado é o exemplo mais significativo que as classes dominantes poderiam ter dado de sua ideia de que a participação popular maciça poderia vir a resultar na elaboração de uma Constituição que rompesse com os limites da transição conservadora.
63. Todos sabem que os direitos dos trabalhadores não serão assegurados apenas com garantias constitucionais e legais. No entanto, a experiência das últimas décadas de luta nos mostra, também, que inscrever direitos e garantias na Constituição é uma forma de assegurar que a luta pela implementação e pela sua realização possam crescer e se ampliar ainda mais. Talvez o melhor exemplo seja o do direito de greve. Nos últimos anos, os trabalhadores não precisaram esperar que o efetivo direito de greve estivesse reconhecido na Constituição para se organizarem e lutarem. O ciclo de greves dos últimos dez anos mostra que a prática combativa rompe muitos obstáculos. No entanto, todos sabemos que, reconhecidos os direitos de greve e a autonomia sindical, se torna mais difícil que ocorram intervenções do Estado nos sindicatos e, como tantas vezes aconteceu durante a Ditadura, que o avanço do próprio movimento sindical seja dificultado com intervenções, cassações e medidas punitivas.
64. Essas contradições da luta política apontam para a necessidade de os trabalhadores intervirem de forma decisiva e vigorosa no processo constituinte, seja para ampliá-lo, com a revogação do chamado entulho autoritário, como LSN [Lei de Segurança Nacional], Lei de Greve, Lei de Imprensa etc., [seja na] abertura da legislação eleitoral, em particular no que diz respeito à representação municipal, para incluírem na futura Constituição muitas das suas conquistas e direitos, aprofundando, assim, as brechas no Estado e no capitalismo. Torna-se imprescindível, portanto, que o crescimento popular dos trabalhadores do campo e da cidade esteja politicamente preparado para intervir e marcar [a] transição com os seus interesses, as suas perspectivas e as soluções práticas que permitem alcançá-las.
65. Não cabe, portanto, a tese de não participação no Congresso Constituinte, mas, muito pelo contrário, ampla disposição de luta e de mobilização para:
1) quebrar a limitação do Congresso Constituinte; eCom a luta e a mobilização dos trabalhadores, a Constituinte permitirá tratar dos grandes temas que lhes interessem de perto: direitos que limitem a propriedade, em especial a propriedade da terra rural e urbana; o problema da dívida externa, a partir da revisão da ordem econômica; a questão da própria democracia, em relação à qual se deverão propor medidas que tornem real a participação popular no poder, inclusive através da criação de Conselhos Populares, de medidas que representem uma efetiva descentralização e desconcentração do poder político, hoje em mãos do Executivo. Na mesma direção devem ir os projetos que façam avançar o controle dos trabalhadores sobre o Estado, e as medidas que permitam limitar o poder das Forças Armadas, como, por exemplo, a submissão de sua hierarquia ao Congresso Nacional e não só ao presidente da República. Através, portanto, da sua luta na Constituição, os trabalhadores poderão, no confronto com as propostas da burguesia, modificar as propostas de uma nova sociedade, capaz de corresponder aos seus interesses e aos da maioria do povo brasileiro.
2) radicalizar o seu cenário em direção aos seus objetivos de curto, médio e longo prazo.
66. Intimamente ligada à questão do processo constituinte está, também, a eleição de governadores, senadores e deputados estaduais. As questões específicas da campanha eleitoral de 1986 estão contidas no Documento Eleitoral Básico, aprovado no IV Encontro Nacional do PT. Aqui, neste Plano de Ação Política e Organizativa, são colocadas algumas questões gerais, que devem servir de orientação, tanto para programas de governo dos eleitos pelo PT quanto para as ações políticas de oposição aos eleitos de outros partidos.
IV - O pacote econômico (38 a 58).
Parte IV do Preâmbulo da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
38. As eleições para prefeito, em novembro de 1985, constituíram-se, paradoxalmente, no ponto de partida para a retomada de iniciativa política do Governo Sarney, com a apresentação de um – aparente – plano ousado de reformas econômicas, que, momentânea e setorialmente, podem, inclusive, provocar conseqüências recessivas para a economia. Embora a validade e a eficácia das mudanças contidas no novo pacote econômico possam suscitar dúvidas, críticas e ceticismo, é incontestável que o governo conseguiu, mais uma vez, despertar esperanças em consideráveis parcelas da população.
39. Isso mostra que é necessário tomar cuidado com as análises apressadas e catastróficas, que concluem pelo esgotamento da capacidade da burguesia em resolver suas contradições e propor soluções, mesmo paliativas, para a superação da crise brasileira. A burguesia brasileira nunca se mostrou impotente para realizar manobras e encontrar saídas de compromisso, que adiassem a resolução dos problemas por vias radicais.
40. Com o pacote econômico decretado em fevereiro de 1986, num momento em que se estreitavam os apoios sociais ao regime, o Governo Sarney, mesmo sem eliminar as contradições internas na Aliança Democrática, abre condições para uma recomposição, tendo por base, inclusive, o endosso entusiástico dos reformistas. Os setores liberais do PMDB baixaram o tom de suas críticas ao governo e os setores progressistas passaram a temer um rompimento, que estava em marcha acelerada. E os moderados sentiram-se encorajados a reforçar seu apoio à Nova República, mesmo sentindo-se prejudicados na divisão dos cargos ministeriais.
41. Esse pacote tem como objetivo principal assegurar a continuidade da transição política conservadora, que se iniciou através da composição da Aliança Democrática no Colégio Eleitoral. Uma transição política para uma nova forma de dominação que não permita o avanço democrático ou concessões importantes para as classes trabalhadoras. Esse processo de transição conservadora estava ameaçado. Em primeiro lugar, porque a Aliança Democrática estava em processo de implosão, após a reforma ministerial imposta por Sarney. O PFL passou a controlar 2/3 do orçamento do País, os principais ministérios e garantiu a indicação de seis exgovernadores da Arena/PDS na nova equipe ministerial. O predomínio absoluto dos ex-colaboradores da Ditadura Militar e a perda de posições do PMDB acabou gerando uma crise política grave, com o afastamento político, do governo, de alguns setores e lideranças do PMDB, descontentes com a falta de cargos políticos e verbas num ano eleitoral. Em segundo lugar, o pacote pretendeu garantir algumas bases eleitorais para que os partidos da Aliança Democrática disputem as eleições em novembro para os governos dos estados e para a Constituinte. As últimas eleições para as prefeituras, em 1985, demonstram alterações nas tendências eleitorais. O PT obteve 11% dos votos e teve o maior crescimento eleitoral, 70% a mais de votos em relação às eleições de 1982, além de conquistar a Prefeitura de Fortaleza e vencer em Goiânia. O PDT obteve 14% e conquistou mais uma capital. O PMDB, apesar de continuar sendo o maior partido do ponto de vista eleitoral, teve uma queda de 45% para 33% dos votos nas grandes cidades. O PFL obteve 9,8% dos votos e está abaixo do PT. O PDS obteve apenas 5,5% e foi o grande derrotado nas eleições, e o PTB atingiu 16%, a partir, basicamente, da eleição de Jânio [Quadros] em São Paulo. Finalmente, o pacote tem como alvo principal o movimento operário e sindical. Quebrar a tendência ao ascenso das lutas operárias e sindicais e desarticular as conquistas que estavam sendo impostas pelas classes trabalhadoras, através das greves, é uma das preocupações mais importantes do pacote. Isso quer dizer que o pacote pretende impor o pacto social.
42. O ano de 1985 foi marcado pelo maior volume de greves da história recente do País: cerca de 6 milhões de trabalhadores grevistas e aproximadamente mil greves. Mais importante ainda é que esse imenso volume de greves foi acompanhado por uma mudança de qualidade, a partir da intervenção e do papel político que a CUT passou a ocupar na luta sindical. No Congresso Nacional da CUT, em 1985, foi definida a deflagração de uma campanha nacional de lutas, que tinha como objetivo central unificar as principais bandeiras de luta e as campanhas salariais. As grandes campanhas salariais e as principais greves foram marcadas por essa orientação:
43. Além dos objetivos políticos, o pacote tem objetivos econômicos que precisam ser analisados de forma cuidadosa:
44. A política de combate à inflação, do pacote econômico, está baseada em duas medidas: congelamento provisório dos preços e tarifas de serviços e desindexação da economia. Isso significa que o pacote pretende proibir os aumentos de preços a partir do dia 27 de fevereiro e, ao mesmo tempo, retirar da economia os principais mecanismos de defesa da inflação, como a correção monetária, os reajustes semestrais de salários, os reajustes de aluguéis etc. O Estado capitalista, ao decretar o congelamento dos preços, intervém no processo de circulação de mercadorias, desarticulando algumas leis de movimento e regulação do mercado capitalista. A intervenção do Estado, estabelecendo preços, representa um processo de politização da economia, no sentido de que os conflitos econômicos, que eram criados e resolvidos no interior do mercado, passem a ser interiorizados no Estado e ter suas soluções através de decisões políticas do governo. Porém, o Estado capitalista, por sua própria natureza, é absolutamente incapaz de assegurar o congelamento de preços de forma duradoura. A estrutura monopolista do capitalismo brasileiro, associada à desordem da produção capitalista, inviabiliza a estabilidade de preços por um prazo dilatado. O Estado não tem poderes para intervir no nível do processo de produção e, assim sendo, é absolutamente inviável, no capitalismo dependente, assegurar um congelamento duradouro ou a estabilização dos preços no mercado através da intervenção política do Estado. O congelamento tenderá a inviabilizar-se a partir das seguintes formas de resistência e pressão política e econômica do capital:
45. O congelamento gerou, porém, mobilização popular, maior participação nas discussões econômicas e maior base de apoio político para o governo, absolutamente inegáveis. Por quê? Em primeiro lugar, porque o congelamento dos preços é uma bandeira secular das classes trabalhadoras e significa, ainda que por pouco tempo, a desarticulação de uma forma complementar do processo de exploração do trabalho e de acumulação do capital. Em segundo lugar, quando a população se mobiliza com a tabela e denuncia a remarcação de preços está, no nível da consciência espontânea, lutando contra o setor do capital, contra uma das formas de exploração. Isso significa que o congelamento tenta jogar o conflito de classes para outro nível, em que o capital tem maiores possibilidades de administrá-lo. O congelamento e a campanha oficial pela fiscalização procuram retirar o conflito de classes da fábrica, onde se dá a forma originária e fundamental da exploração no capitalismo, e deslocá-lo para a relação preço/consumidor. Portanto, tenta retirar a luta de classes do nível da produção e jogá-la para o nível da circulação de mercadorias. É esse nível que aparece para a consciência espontânea da massa como conflito de classes, como uma luta contra a exploração e o capital. O congelamento, nessa conjuntura, representa uma manobra política extremamente eficiente da classe dominante porque tira, momentaneamente, o conflito de classe da fábrica, da produção, e o lança no nível da circulação. Nesse caso, o conflito de classes aparece como uma relação entre os preços e o consumidor e não entre salários e lucro, que é a base fundamental do processo de exploração da sociedade capitalista.
46. A desindexação, por seu turno, significa a retirada de diversos mecanismos de defesa da inflação. No entanto, o impacto do processo de desindexação não é semelhante para todas as classes sociais e agentes econômicos:
47. O pacote promove, ainda, um confisco salarial dos mais profundos e graves da história recente do País. O confisco salarial pode ser discutido de vários ângulos. Os preços, tarifas, serviços, reajustes das ORTN e OTN, taxa de câmbio, foram congelados pelo pico. Ou seja, pelos respectivos valores, incorporando a inflação do período anterior, inclusive do mês de fevereiro. Por exemplo, as ORTN, que correspondem à correção monetária e servem para a valorização das aplicações financeiras e inúmeros contratos comerciais, foram reajustadas em 14,36%, ou seja, de acordo com a inflação integral de fevereiro. Os salários, ao contrário, tiveram seus valores congelados pelo valor médio dos últimos seis meses. Isso significa que os salários foram convertidos para cruzados pela média e os preços pelo pico. Aceitar essa forma de conversão dos salários significa reconhecer que os trabalhadores foram responsáveis pela inflação do período anterior. A conversão salarial pela média retira dos salários o valor correspondente à inflação dos últimos seis meses, que foi a mais elevada da história econômica do País.
48. O procedimento de conversão dos salários pela média dos últimos seis meses é o ponto central do processo de confisco salarial. Porém, há ainda críticas sobre a forma como está sendo calculada a média: o governo considerou apenas cinco meses de inflação para o cálculo, tomando o mês de fevereiro igual a 1.000, ou seja, como se não tivesse havido inflação. O argumento básico do governo é que esse é o poder real de compra, porque o salário devido ao trabalhador em fevereiro só seria recebido em março, quando não haveria inflação. Há que se considerar que na construção civil é prática o recebimento semanal de salários; muitas empresas na indústria e comércio pagam vales quinzenais, além de diaristas e de adiantamentos, fatores que antecipam os gastos do trabalhador assalariado. Portanto, o governo optou por um conceito de média salarial que beneficia os que compram e não os que vendem sua força de trabalho. Os trabalhadores perderam um mês de inflação no cálculo oficial da média. A metodologia oficial de cálculo da inflação coletava os preços para apuração do índice de inflação – IPCA – do dia 15 [do mês anterior] ao [dia] 15 do mês correspondente. Isso significa que a inflação de fevereiro foi calculada com base na evolução dos preços do dia 15 de janeiro a 15 de fevereiro. Portanto, há um resíduo inflacionário, correspondente ao período de 15 a 28 de fevereiro, que deveria aparecer no cálculo da inflação, e esse resíduo foi desprezado pelo novo índice – IPC. Podemos estimar que esse resíduo deve ser de 5% a 7% e que, se fosse considerado, levaria a uma aceleração no disparo do gatilho da escala móvel de 20%, porque os trabalhadores começariam o novo período do cruzado com uma inflação inicial, em março, de 6% a 7%. O abono do governo, de 8%, foi concedido para eliminar essa perda, segundo alguns assessores governamentais. Desde o abono, 6% correspondem ao resíduo e 2% à elevação do custo de vida ocorrido no período anterior ao congelamento de preços, gerada pela especulação com os produtos agrícolas devido à seca. O abono de 8% não eleva a média salarial. Ao contrário, é insuficiente para garantir o cálculo exato da média, se considerarmos que continua faltando um mês de inflação no cálculo.
49. O terceiro aspecto das perdas salariais com o pacote econômico do governo está na escala móvel do salário. O que era média salarial se transformou em pico, ou seja, a média dos últimos seis meses é o maior salário que o trabalhador deverá receber no Brasil do cruzado. Portanto, como os salários só serão corrigidos integralmente com a inflação de 20%, haverá uma perda real de salários no futuro próxima a 9,5%.
50. O pacote tem outras implicações no processo de negociação coletiva. Em primeiro lugar, ele retira da Justiça do Trabalho o poder normativo para a reposição salarial do passado, como vinha ocorrendo a partir da greve nacional dos bancários, em setembro de 85. Em segundo lugar, a mudança no decreto que assegura um reajuste de 60% da inflação passada, como antecipação salarial, por ocasião da data-base, representa um grande retrocesso em relação à política salarial anterior. Essa modificação tem objetivos políticos, ou seja, impedir a unificação de data-base na escala móvel de 20%. Os trabalhadores perderam a unificação da data-base sem que fosse assegurada sequer a reposição integral das perdas salariais nas respectivas datas-base.
51. O pacote representa uma tentativa de modernização conservadora do capitalismo brasileiro. Mais precisamente, os desdobramentos deste pacote, no nível do processo de acumulação de capital, deverão favorecer o grande capital monopolista, concentrando e centralizando o capital e estimulando o processo de internacionalização da economia brasileira. De outro lado, o pacote pretende esquecer o passado em relação às perdas salariais, ao desemprego e à distribuição de renda. Tenta consolidar o padrão de distribuição de renda, portanto, o modelo de crescimento, como a base do atual processo de modernização conservadora do capitalismo brasileiro.
52. O pacote procura modificar o cenário da luta de classes, permitindo uma retomada de iniciativa política da classe dominante, gerando condições sociais, econômicas e políticas mais favoráveis ao processo de transição política conservadora, iniciada no Colégio Eleitoral. Não obstante, a realidade do País está longe dos desejos governamentais. Recentemente, praticamente toda a cidade de Criciúma (SC) encontrou-se paralisada; antes pararam os sapateiros de Franca (SP), portuários e ferroviários do Rio, metalúrgicos de Niterói, professores e funcionários do Distrito Federal, metalúrgicos de Porto Alegre e Canoas (RS) etc. Essas greves, todas contra o arrocho e o congelamento da miséria, mostram que os trabalhadores recusam, na prática, os plano do governo. Assim:
54. Essas variantes possíveis da aplicação do atual pacote econômico devem nos alertar para a necessidade de encontrar respostas adequadas, para levar as massas trabalhadoras a compreender que, em qualquer dos casos, a burguesia só está buscando solução para sua própria crise. Essas respostas têm que levar em conta que uma parte das massas voltou a acreditar nas promessas da burguesia, colocando-se, pois, sob sua hegemonia.
55. Isso, aliás, é decorrência da própria luta do movimento operário-sindical e popular, que ameaçava a burguesia de perder sua hegemonia sobre as grandes massas. Como é de praxe na luta entre o capital e o trabalho, a burguesia viu-se compelida a apresentar concessões a reivindicações concretas do movimento social e fazer com que este entrasse na defensiva. Houve, assim, uma troca no domínio da iniciativa. Antes a iniciativa estava com o movimento sindical, que forçava o governo a adotar a trimestralidade, a diminuição da jornada de trabalho, seguro-desemprego, congelamento etc. Ao apossar-se, mesmo de forma deturpada, de algumas dessas bandeiras, ainda por cima colorindo-as com um matiz pseudo-nacionalista, o Governo Sarney procurou deter a iniciativa política e obrigar o movimento sindical e popular a reformular suas táticas de luta.
56. Esse processo faz parte da educação de luta dos trabalhadores, em especial de seus setores mais avançados. A disputa pela hegemonia sobre as grandes massas que ainda não despertaram para a vida política, ou que despertaram de forma incompleta, com vistas à conquista ou manutenção do poder político, é o eixo que atravessa as ações políticas. A perda momentânea de iniciativa, assim, se é preocupante, não quer dizer que a batalha esteja perdida, da mesma forma que a conquista parcial da iniciativa não significa que a batalha esteja ganha. Mas exige de nós uma postura crítica realista e a adoção das políticas correspondentes para neutralizar a política governamental e levar as massas, qualquer que seja o resultado das medidas adotadas, a compreenderem que, sob o capitalismo, elas continuarão sendo exploradas e oprimidas e que os problemas estruturais que as afligem continuarão existindo, enquanto persistir esse modo de produção.
57. Ao baixar o pacote, o Governo Sarney procura ganhar, com isto, a legitimidade que não possui, como fruto que é do Colégio Eleitoral. O mandato Sarney continua tão ilegítimo quanto antes. O PT continuará desenvolvendo sua linha de oposição ao governo e lutando pelo seu fim o quanto antes possível. O PT mantém sua defesa das diretas para Presidente.
58. As políticas para enfrentar as medidas da Nova República e para tirar as massas da hegemonia da burguesia fazem parte das tarefas do PT para a atual conjuntura, e serão vistas mais adiante neste documento.
Ponto de partida
38. As eleições para prefeito, em novembro de 1985, constituíram-se, paradoxalmente, no ponto de partida para a retomada de iniciativa política do Governo Sarney, com a apresentação de um – aparente – plano ousado de reformas econômicas, que, momentânea e setorialmente, podem, inclusive, provocar conseqüências recessivas para a economia. Embora a validade e a eficácia das mudanças contidas no novo pacote econômico possam suscitar dúvidas, críticas e ceticismo, é incontestável que o governo conseguiu, mais uma vez, despertar esperanças em consideráveis parcelas da população.
39. Isso mostra que é necessário tomar cuidado com as análises apressadas e catastróficas, que concluem pelo esgotamento da capacidade da burguesia em resolver suas contradições e propor soluções, mesmo paliativas, para a superação da crise brasileira. A burguesia brasileira nunca se mostrou impotente para realizar manobras e encontrar saídas de compromisso, que adiassem a resolução dos problemas por vias radicais.
Objetivos políticos do pacote
40. Com o pacote econômico decretado em fevereiro de 1986, num momento em que se estreitavam os apoios sociais ao regime, o Governo Sarney, mesmo sem eliminar as contradições internas na Aliança Democrática, abre condições para uma recomposição, tendo por base, inclusive, o endosso entusiástico dos reformistas. Os setores liberais do PMDB baixaram o tom de suas críticas ao governo e os setores progressistas passaram a temer um rompimento, que estava em marcha acelerada. E os moderados sentiram-se encorajados a reforçar seu apoio à Nova República, mesmo sentindo-se prejudicados na divisão dos cargos ministeriais.
41. Esse pacote tem como objetivo principal assegurar a continuidade da transição política conservadora, que se iniciou através da composição da Aliança Democrática no Colégio Eleitoral. Uma transição política para uma nova forma de dominação que não permita o avanço democrático ou concessões importantes para as classes trabalhadoras. Esse processo de transição conservadora estava ameaçado. Em primeiro lugar, porque a Aliança Democrática estava em processo de implosão, após a reforma ministerial imposta por Sarney. O PFL passou a controlar 2/3 do orçamento do País, os principais ministérios e garantiu a indicação de seis exgovernadores da Arena/PDS na nova equipe ministerial. O predomínio absoluto dos ex-colaboradores da Ditadura Militar e a perda de posições do PMDB acabou gerando uma crise política grave, com o afastamento político, do governo, de alguns setores e lideranças do PMDB, descontentes com a falta de cargos políticos e verbas num ano eleitoral. Em segundo lugar, o pacote pretendeu garantir algumas bases eleitorais para que os partidos da Aliança Democrática disputem as eleições em novembro para os governos dos estados e para a Constituinte. As últimas eleições para as prefeituras, em 1985, demonstram alterações nas tendências eleitorais. O PT obteve 11% dos votos e teve o maior crescimento eleitoral, 70% a mais de votos em relação às eleições de 1982, além de conquistar a Prefeitura de Fortaleza e vencer em Goiânia. O PDT obteve 14% e conquistou mais uma capital. O PMDB, apesar de continuar sendo o maior partido do ponto de vista eleitoral, teve uma queda de 45% para 33% dos votos nas grandes cidades. O PFL obteve 9,8% dos votos e está abaixo do PT. O PDS obteve apenas 5,5% e foi o grande derrotado nas eleições, e o PTB atingiu 16%, a partir, basicamente, da eleição de Jânio [Quadros] em São Paulo. Finalmente, o pacote tem como alvo principal o movimento operário e sindical. Quebrar a tendência ao ascenso das lutas operárias e sindicais e desarticular as conquistas que estavam sendo impostas pelas classes trabalhadoras, através das greves, é uma das preocupações mais importantes do pacote. Isso quer dizer que o pacote pretende impor o pacto social.
As greves de 1985
42. O ano de 1985 foi marcado pelo maior volume de greves da história recente do País: cerca de 6 milhões de trabalhadores grevistas e aproximadamente mil greves. Mais importante ainda é que esse imenso volume de greves foi acompanhado por uma mudança de qualidade, a partir da intervenção e do papel político que a CUT passou a ocupar na luta sindical. No Congresso Nacional da CUT, em 1985, foi definida a deflagração de uma campanha nacional de lutas, que tinha como objetivo central unificar as principais bandeiras de luta e as campanhas salariais. As grandes campanhas salariais e as principais greves foram marcadas por essa orientação:
a) a campanha salarial dos metalúrgicos da CUT, em abril de 1985, sustentou uma greve de 54 dias, que quebrou a proposta do pacto social e garantiu a conquista da redução da jornada de trabalho, depois de 50 anos em que a classe trabalhadora não havia obtido conquistas sobre a jornada de trabalho;
b) a greve nacional dos bancários reforçou a tendência à unificação das campanhas salariais e institucionalizou a reposição salarial, com a conquista do índice de 12,5%;
c) a Campanha Salarial Unificada de São Paulo unificou a luta de várias categorias, uma experiência de luta que não ocorria desde 1983. Essa campanha, com uma greve parcial de apenas dois dias e com piquetes, garantiu a conquista [de reajuste] trimestral, da redução da jornada de trabalho e da reposição salarial de 12%. Essa vitória demonstrou a importância que a conjuntura política pode ter sobre o movimento grevista, pois o fato de a campanha salarial ter sido às vésperas da eleição de novembro garantiu a vitória da greve. Todo esse processo de avanço do movimento permitiu uma nova orientação para a Campanha Nacional de Lutas/1986 a partir da Plenária Nacional da CUT, realizada em dezembro de 1985. Nessa Plenária, a Campanha Nacional de Lutas teve suas bandeiras ampliadas. Além dos quatro pontos – reforma agrária, redução da jornada de trabalho para 40 horas, trimestral e salário-desemprego – foi incluído o salário mínimo real e o congelamento de preços dos gêneros de primeira necessidade.
Objetivos econômicos do pacote
43. Além dos objetivos políticos, o pacote tem objetivos econômicos que precisam ser analisados de forma cuidadosa:
1º) Pagar a dívida externa – O pacote pretende garantir melhores condições para o pagamento da dívida externa, de 104 bilhões de dólares. Adotado em vários países endividados – Israel, Argentina, Peru, Bolívia, entre outros – esse tipo de pacote demonstra que corresponde aos interesses dos banqueiros e do FMI, com o fim de assegurar melhores condições para o pagamento da dívida externa. O pagamento da dívida externa é o que administra a política econômica do País. Neste ano, deverão ser pagos cerca de 12 bilhões de dólares de juros, além de 8 bilhões de dólares de amortização, depositados em cruzeiros/cruzados no Banco Central, para serem “negociados”. O pacote está totalmente articulado com esse objetivo, que continua sendo o centro das preocupações da política econômica.
2º) Pagar a dívida pública – O Estado brasileiro deve um quatrilhão, cento e sete trilhões de cruzeiros [Cr$ 1.107 quatrilhão]. Essa dívida pública, diretamente associada e dependente da dívida externa, exigirá cerca de 118 trilhões de cruzeiros do governo, apenas para o pagamento dos juros, em 1986. Isso significa que o governo brasileiro está pagando mais em juros do que todos os gastos sociais previstos para o ano de 1986 – cerca de 74 trilhões de cruzeiros.
3º) Combater a Inflação – A inflação é um instrumento adicional de que o capital financeiro e o grande capital monopolista se utilizam para expropriar rendas e recursos dos outros setores da sociedade, especialmente das classes trabalhadoras. Porém, ao atingir níveis superiores a 350%, como eram as previsões em 1986, a inflação perde essa funcionalidade para o grande capital e coloca em risco o próprio sistema. Portanto, combater esse nível de inflação passou a ser uma preocupação fundamental do governo, com o total apoio do grande capital, inclusive do capital financeiro internacional e nacional. O pacote econômico quebra aquele patamar de inflação que os diversos setores da sociedade criaram ao longo dos últimos anos.
4º) Todos esses objetivos se realizarão a partir do confisco dos salários – O pacote procura garantir um processo de transferência de renda na economia, dos assalariados para as empresas, com o fim de assegurar o combate à inflação e o pagamento da dívida pública e da externa. O confisco salarial é a base de todo o plano de estabilização econômica do Governo Sarney.
O pacote e a inflação
44. A política de combate à inflação, do pacote econômico, está baseada em duas medidas: congelamento provisório dos preços e tarifas de serviços e desindexação da economia. Isso significa que o pacote pretende proibir os aumentos de preços a partir do dia 27 de fevereiro e, ao mesmo tempo, retirar da economia os principais mecanismos de defesa da inflação, como a correção monetária, os reajustes semestrais de salários, os reajustes de aluguéis etc. O Estado capitalista, ao decretar o congelamento dos preços, intervém no processo de circulação de mercadorias, desarticulando algumas leis de movimento e regulação do mercado capitalista. A intervenção do Estado, estabelecendo preços, representa um processo de politização da economia, no sentido de que os conflitos econômicos, que eram criados e resolvidos no interior do mercado, passem a ser interiorizados no Estado e ter suas soluções através de decisões políticas do governo. Porém, o Estado capitalista, por sua própria natureza, é absolutamente incapaz de assegurar o congelamento de preços de forma duradoura. A estrutura monopolista do capitalismo brasileiro, associada à desordem da produção capitalista, inviabiliza a estabilidade de preços por um prazo dilatado. O Estado não tem poderes para intervir no nível do processo de produção e, assim sendo, é absolutamente inviável, no capitalismo dependente, assegurar um congelamento duradouro ou a estabilização dos preços no mercado através da intervenção política do Estado. O congelamento tenderá a inviabilizar-se a partir das seguintes formas de resistência e pressão política e econômica do capital:
a) parar de produzir e criar crise de abastecimento no mercado, para pressionar a quebra ou revisão da política de preços do governo. Exemplo: a carne, medicamentos, leite...Essas e outras formas de resistência do capital significam que a única maneira de evitar crises de abastecimento seria a monopolização do comércio atacadista pelo Estado, o confisco de estoques e a intervenção do Estado no nível da própria produção. Essas medidas, por sua natureza anticapitalista, dificilmente poderão ser adotadas pelo Estado capitalista, a não ser em pequena escala.
b) queda da qualidade e falsificação dos produtos, como forma de reduzir custos e assegurar as margens de lucro das grandes empresas. Ex.: farinha de trigo (90% dos moinhos do Rio Grande do Sul foram autuados em flagrante);
c) mercado paralelo ou cobrança de ágio, por fora da tabela, para assegurar margens de lucros. Ex.: nas feiras, aluguéis etc.;
d) lançamento de novos produtos como forma de fugir da tabela.
O pacote e o congelamento
45. O congelamento gerou, porém, mobilização popular, maior participação nas discussões econômicas e maior base de apoio político para o governo, absolutamente inegáveis. Por quê? Em primeiro lugar, porque o congelamento dos preços é uma bandeira secular das classes trabalhadoras e significa, ainda que por pouco tempo, a desarticulação de uma forma complementar do processo de exploração do trabalho e de acumulação do capital. Em segundo lugar, quando a população se mobiliza com a tabela e denuncia a remarcação de preços está, no nível da consciência espontânea, lutando contra o setor do capital, contra uma das formas de exploração. Isso significa que o congelamento tenta jogar o conflito de classes para outro nível, em que o capital tem maiores possibilidades de administrá-lo. O congelamento e a campanha oficial pela fiscalização procuram retirar o conflito de classes da fábrica, onde se dá a forma originária e fundamental da exploração no capitalismo, e deslocá-lo para a relação preço/consumidor. Portanto, tenta retirar a luta de classes do nível da produção e jogá-la para o nível da circulação de mercadorias. É esse nível que aparece para a consciência espontânea da massa como conflito de classes, como uma luta contra a exploração e o capital. O congelamento, nessa conjuntura, representa uma manobra política extremamente eficiente da classe dominante porque tira, momentaneamente, o conflito de classe da fábrica, da produção, e o lança no nível da circulação. Nesse caso, o conflito de classes aparece como uma relação entre os preços e o consumidor e não entre salários e lucro, que é a base fundamental do processo de exploração da sociedade capitalista.
O pacote e a desindexação
46. A desindexação, por seu turno, significa a retirada de diversos mecanismos de defesa da inflação. No entanto, o impacto do processo de desindexação não é semelhante para todas as classes sociais e agentes econômicos:
a) Capital Financeiro – O capital financeiro perdeu a correção monetária que incidia sobre os diversos títulos e empréstimos. Porém, a taxa de juros permanece liberada e permite que a correção monetária continue nela, assegurando a defesa da margem de lucros para os bancos.
b) Empresas Produtivas – No setor produtivo, o impacto do pacote também é diferenciado. O congelamento impede o repasse aos preços, mas as empresas buscarão reduzir custos e aumentar produtividade para defenderem suas margens de lucro. A possibilidade de redução dos custos é viável, principalmente nas grandes empresas oligopólicas, que têm maior poder de mercado e poderão utilizar-se das pequenas e médias empresas como um colchão amortecedor do pacote. A política de redução de custos daquelas empresas deverá se basear em: investimentos e novas tecnologias, ocasionando o desemprego; aumento da rotatividade no emprego como forma de redução dos salários e de peso relativo da folha de pagamento; arrocho sobre as pequenas e médias empresas, especialmente fornecedoras de componentes.
O pacote e os salários
47. O pacote promove, ainda, um confisco salarial dos mais profundos e graves da história recente do País. O confisco salarial pode ser discutido de vários ângulos. Os preços, tarifas, serviços, reajustes das ORTN e OTN, taxa de câmbio, foram congelados pelo pico. Ou seja, pelos respectivos valores, incorporando a inflação do período anterior, inclusive do mês de fevereiro. Por exemplo, as ORTN, que correspondem à correção monetária e servem para a valorização das aplicações financeiras e inúmeros contratos comerciais, foram reajustadas em 14,36%, ou seja, de acordo com a inflação integral de fevereiro. Os salários, ao contrário, tiveram seus valores congelados pelo valor médio dos últimos seis meses. Isso significa que os salários foram convertidos para cruzados pela média e os preços pelo pico. Aceitar essa forma de conversão dos salários significa reconhecer que os trabalhadores foram responsáveis pela inflação do período anterior. A conversão salarial pela média retira dos salários o valor correspondente à inflação dos últimos seis meses, que foi a mais elevada da história econômica do País.
48. O procedimento de conversão dos salários pela média dos últimos seis meses é o ponto central do processo de confisco salarial. Porém, há ainda críticas sobre a forma como está sendo calculada a média: o governo considerou apenas cinco meses de inflação para o cálculo, tomando o mês de fevereiro igual a 1.000, ou seja, como se não tivesse havido inflação. O argumento básico do governo é que esse é o poder real de compra, porque o salário devido ao trabalhador em fevereiro só seria recebido em março, quando não haveria inflação. Há que se considerar que na construção civil é prática o recebimento semanal de salários; muitas empresas na indústria e comércio pagam vales quinzenais, além de diaristas e de adiantamentos, fatores que antecipam os gastos do trabalhador assalariado. Portanto, o governo optou por um conceito de média salarial que beneficia os que compram e não os que vendem sua força de trabalho. Os trabalhadores perderam um mês de inflação no cálculo oficial da média. A metodologia oficial de cálculo da inflação coletava os preços para apuração do índice de inflação – IPCA – do dia 15 [do mês anterior] ao [dia] 15 do mês correspondente. Isso significa que a inflação de fevereiro foi calculada com base na evolução dos preços do dia 15 de janeiro a 15 de fevereiro. Portanto, há um resíduo inflacionário, correspondente ao período de 15 a 28 de fevereiro, que deveria aparecer no cálculo da inflação, e esse resíduo foi desprezado pelo novo índice – IPC. Podemos estimar que esse resíduo deve ser de 5% a 7% e que, se fosse considerado, levaria a uma aceleração no disparo do gatilho da escala móvel de 20%, porque os trabalhadores começariam o novo período do cruzado com uma inflação inicial, em março, de 6% a 7%. O abono do governo, de 8%, foi concedido para eliminar essa perda, segundo alguns assessores governamentais. Desde o abono, 6% correspondem ao resíduo e 2% à elevação do custo de vida ocorrido no período anterior ao congelamento de preços, gerada pela especulação com os produtos agrícolas devido à seca. O abono de 8% não eleva a média salarial. Ao contrário, é insuficiente para garantir o cálculo exato da média, se considerarmos que continua faltando um mês de inflação no cálculo.
49. O terceiro aspecto das perdas salariais com o pacote econômico do governo está na escala móvel do salário. O que era média salarial se transformou em pico, ou seja, a média dos últimos seis meses é o maior salário que o trabalhador deverá receber no Brasil do cruzado. Portanto, como os salários só serão corrigidos integralmente com a inflação de 20%, haverá uma perda real de salários no futuro próxima a 9,5%.
50. O pacote tem outras implicações no processo de negociação coletiva. Em primeiro lugar, ele retira da Justiça do Trabalho o poder normativo para a reposição salarial do passado, como vinha ocorrendo a partir da greve nacional dos bancários, em setembro de 85. Em segundo lugar, a mudança no decreto que assegura um reajuste de 60% da inflação passada, como antecipação salarial, por ocasião da data-base, representa um grande retrocesso em relação à política salarial anterior. Essa modificação tem objetivos políticos, ou seja, impedir a unificação de data-base na escala móvel de 20%. Os trabalhadores perderam a unificação da data-base sem que fosse assegurada sequer a reposição integral das perdas salariais nas respectivas datas-base.
Trabalhadores contra o pacote
51. O pacote representa uma tentativa de modernização conservadora do capitalismo brasileiro. Mais precisamente, os desdobramentos deste pacote, no nível do processo de acumulação de capital, deverão favorecer o grande capital monopolista, concentrando e centralizando o capital e estimulando o processo de internacionalização da economia brasileira. De outro lado, o pacote pretende esquecer o passado em relação às perdas salariais, ao desemprego e à distribuição de renda. Tenta consolidar o padrão de distribuição de renda, portanto, o modelo de crescimento, como a base do atual processo de modernização conservadora do capitalismo brasileiro.
52. O pacote procura modificar o cenário da luta de classes, permitindo uma retomada de iniciativa política da classe dominante, gerando condições sociais, econômicas e políticas mais favoráveis ao processo de transição política conservadora, iniciada no Colégio Eleitoral. Não obstante, a realidade do País está longe dos desejos governamentais. Recentemente, praticamente toda a cidade de Criciúma (SC) encontrou-se paralisada; antes pararam os sapateiros de Franca (SP), portuários e ferroviários do Rio, metalúrgicos de Niterói, professores e funcionários do Distrito Federal, metalúrgicos de Porto Alegre e Canoas (RS) etc. Essas greves, todas contra o arrocho e o congelamento da miséria, mostram que os trabalhadores recusam, na prática, os plano do governo. Assim:
a) em relação aos trabalhadores do campo, as iniciativas do governo, de importação de alimentos, de implantação regional da proposta de reforma agrária e política agrícola visando tornar os latifundiários “produtivos”, visam isolar as lutas pela reforma agrária, aumentar o desemprego nas regiões da agroindústria canavieira, fortalecer o sindicalismo pelego;53. A luta salarial tenderá a se tornar mais difícil, e o isolamento, um risco. Dois comportamentos opostos explicam por que uma greve pode se isolar ou não. Na greve dos sapateiros de Franca, a CUT agiu explicando o sentido do movimento contra o pacote, de recusa do arrocho salarial, mostrando praticamente que os trabalhadores não aceitam “pagar o pato” em nome do congelamento de preços. Essa atuação foi radicalmente oposta à da CGT e da diretoria do Sindicato na greve dos metroviários de São Paulo. Depois de pressionadas pela base a entrar na luta, essas direções tentaram, a todo momento, falar que a greve não era contra o pacote, desviando seu rumo e tentando ocultar da população o real motivo da paralisação. Mas a ação dos petistas e da CUT nessa greve serviu para mostrar que a luta era realmente contra o pacote, impedindo maiores prejuízos para o movimento.
b) em relação à classe operária, o congelamento de preços, por seu impacto popular, deverá ser a bandeira da política de enfrentamento dos patrões nas mesas de negociação;
c) em relação aos bancários, além do pacote econômico, o governo pretende realizar uma reforma bancária, que provocará mais demissões na categoria. Nesse quadro, os 800 mil bancários do País terão que organizar a sua Campanha Salarial/86, intensificando desde já a luta contra as demissões. Nessa luta, ocupa lugar importante a denúncia e o combate ao boicote levado pelo grupo liderado pela Contec, que é também da CGT, que apoia o pacote e se oferece para administrar as demissões em massa, em conjunto com os banqueiros e com o governo; e que, nessa linha, acaba de desrespeitar a deliberação nacional de realizar o Encontro Nacional no Rio de Janeiro, transferido pela Contec para Fortaleza.
54. Essas variantes possíveis da aplicação do atual pacote econômico devem nos alertar para a necessidade de encontrar respostas adequadas, para levar as massas trabalhadoras a compreender que, em qualquer dos casos, a burguesia só está buscando solução para sua própria crise. Essas respostas têm que levar em conta que uma parte das massas voltou a acreditar nas promessas da burguesia, colocando-se, pois, sob sua hegemonia.
55. Isso, aliás, é decorrência da própria luta do movimento operário-sindical e popular, que ameaçava a burguesia de perder sua hegemonia sobre as grandes massas. Como é de praxe na luta entre o capital e o trabalho, a burguesia viu-se compelida a apresentar concessões a reivindicações concretas do movimento social e fazer com que este entrasse na defensiva. Houve, assim, uma troca no domínio da iniciativa. Antes a iniciativa estava com o movimento sindical, que forçava o governo a adotar a trimestralidade, a diminuição da jornada de trabalho, seguro-desemprego, congelamento etc. Ao apossar-se, mesmo de forma deturpada, de algumas dessas bandeiras, ainda por cima colorindo-as com um matiz pseudo-nacionalista, o Governo Sarney procurou deter a iniciativa política e obrigar o movimento sindical e popular a reformular suas táticas de luta.
56. Esse processo faz parte da educação de luta dos trabalhadores, em especial de seus setores mais avançados. A disputa pela hegemonia sobre as grandes massas que ainda não despertaram para a vida política, ou que despertaram de forma incompleta, com vistas à conquista ou manutenção do poder político, é o eixo que atravessa as ações políticas. A perda momentânea de iniciativa, assim, se é preocupante, não quer dizer que a batalha esteja perdida, da mesma forma que a conquista parcial da iniciativa não significa que a batalha esteja ganha. Mas exige de nós uma postura crítica realista e a adoção das políticas correspondentes para neutralizar a política governamental e levar as massas, qualquer que seja o resultado das medidas adotadas, a compreenderem que, sob o capitalismo, elas continuarão sendo exploradas e oprimidas e que os problemas estruturais que as afligem continuarão existindo, enquanto persistir esse modo de produção.
57. Ao baixar o pacote, o Governo Sarney procura ganhar, com isto, a legitimidade que não possui, como fruto que é do Colégio Eleitoral. O mandato Sarney continua tão ilegítimo quanto antes. O PT continuará desenvolvendo sua linha de oposição ao governo e lutando pelo seu fim o quanto antes possível. O PT mantém sua defesa das diretas para Presidente.
58. As políticas para enfrentar as medidas da Nova República e para tirar as massas da hegemonia da burguesia fazem parte das tarefas do PT para a atual conjuntura, e serão vistas mais adiante neste documento.
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III - Transição e crise da burguesia: Hegemonia e disputa (35 a 37).
Parte III do Preâmbulo da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
35. O fato de que o Regime Militar não foi derrotado nas ruas e de que a democratização burguesa convive com a persistência do sistema opressivo e com uma política econômica que se baseia, sobretudo, no sacrifício das grandes classes trabalhadoras não significa que a burguesia seja incapaz de realizar manobras ou mesmo sair da crise. O problema, no caso, consiste em que a solução das crises do capitalismo é sempre encontrada através da manutenção da exploração, em maior ou menor intensidade, do trabalho assalariado e dos trabalhadores em geral. Os trabalhadores encontram-se, quase sempre, em condições precárias, esteja ou não o capitalismo em crise. Entretanto, para manter sua hegemonia, a burguesia precisa, sempre, dar a impressão de que está resolvendo a crise de toda a sociedade e de todas as classes, não só a sua crise.
36. A Aliança Democrática assumiu essa tarefa de tirar a burguesia da crise conjuntural em que estava mergulhada e, ao mesmo tempo, realizar as manobras e as concessões indispensáveis para manter as massas sob sua hegemonia e evitar o aguçamento perigoso das contradições sociais. Aproveitando-se das esperanças que procurou inocular nas massas, com a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral e da comoção que sua morte causou, o Governo Sarney avançou, primeiramente, na realização de reformas políticas parciais, com o claro intuito de cercear a participação popular no Parlamento, na Constituinte e no controle democrático do poder, e adiar ao máximo as mudanças que se faziam necessárias na economia. Mesmo a reforma agrária, cuja necessidade (embora com objetivos diferentes) só não é reconhecida por setores reacionários do latifúndio, não tem passado da promessa formal de realizá-la e de medidas paliativas nas áreas de maior tensão, onde continuam a atuar as milícias dos latifúndios e onde o assassinato de trabalhadores rurais permanece impune.
37. As eleições de 1985 [para prefeitos nas capitais e antigas áreas de segurança nacional] mostraram um profundo descontentamento popular com os rumos do governo e sua inoperância e imobilismo no atendimento da maior parte das reivindicações econômicas, sociais e políticas. E deflagraram uma crise relativamente séria na AD [Aliança Democrática], cada vez mais sob a hegemonia dos conservadores. Com o perigo da perda de suas bases populares e de sustentação, os setores liberais do PMDB passaram à disputa aberta da direção do Partido e da AD, a pretexto de que o governo não estaria cumprindo o programa de mudanças acertado com Tancredo. O episódio da renovação do Ministério, na qual ganhou predomínio o PFL e no qual pontificam figuras do antigo regime, foi o ponto de virada da posição da chamada ala progressista do PMDB.
35. O fato de que o Regime Militar não foi derrotado nas ruas e de que a democratização burguesa convive com a persistência do sistema opressivo e com uma política econômica que se baseia, sobretudo, no sacrifício das grandes classes trabalhadoras não significa que a burguesia seja incapaz de realizar manobras ou mesmo sair da crise. O problema, no caso, consiste em que a solução das crises do capitalismo é sempre encontrada através da manutenção da exploração, em maior ou menor intensidade, do trabalho assalariado e dos trabalhadores em geral. Os trabalhadores encontram-se, quase sempre, em condições precárias, esteja ou não o capitalismo em crise. Entretanto, para manter sua hegemonia, a burguesia precisa, sempre, dar a impressão de que está resolvendo a crise de toda a sociedade e de todas as classes, não só a sua crise.
36. A Aliança Democrática assumiu essa tarefa de tirar a burguesia da crise conjuntural em que estava mergulhada e, ao mesmo tempo, realizar as manobras e as concessões indispensáveis para manter as massas sob sua hegemonia e evitar o aguçamento perigoso das contradições sociais. Aproveitando-se das esperanças que procurou inocular nas massas, com a vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral e da comoção que sua morte causou, o Governo Sarney avançou, primeiramente, na realização de reformas políticas parciais, com o claro intuito de cercear a participação popular no Parlamento, na Constituinte e no controle democrático do poder, e adiar ao máximo as mudanças que se faziam necessárias na economia. Mesmo a reforma agrária, cuja necessidade (embora com objetivos diferentes) só não é reconhecida por setores reacionários do latifúndio, não tem passado da promessa formal de realizá-la e de medidas paliativas nas áreas de maior tensão, onde continuam a atuar as milícias dos latifúndios e onde o assassinato de trabalhadores rurais permanece impune.
37. As eleições de 1985 [para prefeitos nas capitais e antigas áreas de segurança nacional] mostraram um profundo descontentamento popular com os rumos do governo e sua inoperância e imobilismo no atendimento da maior parte das reivindicações econômicas, sociais e políticas. E deflagraram uma crise relativamente séria na AD [Aliança Democrática], cada vez mais sob a hegemonia dos conservadores. Com o perigo da perda de suas bases populares e de sustentação, os setores liberais do PMDB passaram à disputa aberta da direção do Partido e da AD, a pretexto de que o governo não estaria cumprindo o programa de mudanças acertado com Tancredo. O episódio da renovação do Ministério, na qual ganhou predomínio o PFL e no qual pontificam figuras do antigo regime, foi o ponto de virada da posição da chamada ala progressista do PMDB.
II - Perspectivas de transformações na direção do socialismo (16 a 34).
Parte II do Preâmbulo da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
16. A projeção dos delineamentos gerais de uma futura sociedade socialista no Brasil, tanto quanto do processo de transformações para se chegar a ela, exige o concurso de três vertentes de conhecimentos, que precisam ser adequadamente combinadas e articuladas: o estudo sistemático, objetivo e aprofundado da realidade concreta do Brasil, nas suas dimensões histórica, social, econômica, cultural, política e institucional; a teorização da prática social dos movimentos sociais brasileiros, notadamente o popular, o sindical e o político-partidário, fonte indispensável para a apreensão concreta do que e do como fazer histórico cotidiano nas condições brasileiras; e a avaliação crítica das contribuições teóricas dos que pensaram a construção do socialismo, pelo seu cotejamento com as experiências concretas já tentadas em vários países de todo o mundo nestes últimos cem anos. O resultado desse esforço há de ser a imagem de um socialismo não “livresco”, nem de “gabinete”, nem de “cúpula”, nem “importado”, nem “retórico”, nem “imposto” etc., mas sim de um socialismo nascido da realidade brasileira, pensado e construído a partir da vontade e das ações das classes trabalhadoras, nas condições de necessidade e de possibilidade que essas mesmas classes irão modificando com sua ação concreta.
17. Como contribuição para esse esforço, é possível desde já dizer que, provavelmente, o processo de transformação – isto é, o caminho para o socialismo no Brasil – será modificado, assumirá mil formas de manifestações, terá avanços e recuos e será marcado por um eixo central básico, constituído de grandes e cada vez mais freqüentes e intensas ações políticas de massa, auxiliadas por todas as formas de luta da classe trabalhadora – da participação em campanhas eleitorais às greves e aos enfrentamentos com a burguesia e com o Estado. Nesse sentido, é importante reconhecer que no atual estágio, e tendo em vista as observações da 1ª Parte deste documento, a classe trabalhadora tem ainda pela frente um longo e dificultoso processo de acumulação de forças e fortalecimento de sua organização, mas que terá de combinar, desde já, conquistas reais no plano político, econômico e social, que lhe permitam avançar no caminho.
18. A conscientização, a organização e a acumulação de forças da classe trabalhadora passa, necessariamente, por um processo de integração e unificação de seus diversos setores e frações num projeto histórico e político comum, em que sejam levados em conta tanto os objetivos finais – a construção do socialismo – quanto as peculiaridades e os conflitos que hoje distinguem, e às vezes separam, aqueles setores e frações. Assim, só é possível conquistar, para esse projeto comum, o apoio e a participação das grandes camadas da pequena burguesia rural e urbana, na luta pela radical transformação da sociedade rumo ao socialismo, no Brasil, se forem asseguradas a tais camadas condições reais do progresso social – sem ameaças a seus limitados meios de produção.
19. Estas considerações permitem, desde já, também, delimitar as linhas gerais e o caráter das alianças que serão necessárias e possíveis no processo de transformações no rumo do socialismo. Alianças e acordos serão necessários, e indispensáveis, entre o conjunto heterogêneo de forças políticas e sociais que atuam no interior das classes trabalhadoras, e que, cada uma a seu modo, representam com maior ou menor grau de legitimidade interesses e valores setoriais e conjunturais dos diversos componentes da classe. Por outro lado, é impossível supor alianças estratégicas com a burguesia e com as forças políticas que sustentam a dominação e a hegemonia da classe burguesa e a perpetuação do sistema capitalista. Certamente, em determinadas conjunturas, pode-se tornar imprescindível fazer acordos restritos e limitados em torno de pontos definidos, concretos e objetivos, com forças que não lutam pelo socialismo, mas é necessário abandonar de vez a ilusão de que seja possível manter uma tática antagônica à estratégia, ou de que, com palavras e discursos hábeis, seja viável enganar momentaneamente as forças sociais e políticas contrárias ao socialismo. As experiências históricas do Brasil e de outros países mostram que são os pretensos enganadores que sempre acabam logrados, e que as alianças da classe trabalhadora com a burguesia só favorecem os interesses desta, e atrasam ou impedem o avanço da organização daquela, bem como o caminho para o socialismo.
20. Isso não quer dizer, porém, que a tarefa de construção do socialismo esteja reservada a um só setor, a uma só fração de classe ou a um só partido. Na ampliação do espaço democrático e na criação de condições políticas para avançar no caminho do socialismo, bem como na defesa de conquistas imediatas das classes trabalhadoras, são necessários e possíveis, sim, acordos itemizados e delimitados com forças sociais e político-partidárias, mesmo que essas forças não se proponham o socialismo como objetivo final.
21. Evidentemente, ao Partido dos Trabalhadores caberá um papel estratégico e fundamental na criação dessas condições e na construção do socialismo. Algumas das tarefas concernentes a esse papel serão analisadas em outra parte deste Plano de Ação Política e Organizativa.
22. A análise feita na 1ª Parte deste Plano de Ação também mostra que os elementos do desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo estando muito longe de serem completos, indicam que no processo de construção socialista não se podem seguir mecanicamente os preceitos de substituição imediata, por meios administrativos ou executivos, da propriedade privada dos meios de produção e circulação pela propriedade social; nem substituir prontamente a economia mercantil por formas sociais de distribuição, circulação e consumo; nem implantar uma completa organização planificada da economia. As leis econômicas em ação numa determinada sociedade não podem ser extintas ou modificadas por decretos, mesmo quando esses decretos tenham um considerável respaldo político de massas, como demonstrou a experiência de construção dos países socialistas.
23. No Brasil, ainda não foram esgotadas, pelo desenvolvimento capitalista, as formas econômicas pequeno-burguesas nem a economia mercantil simples. A própria expansão diferenciada do capitalismo e seu grau médio de desenvolvimento não permitiram que a economia mercantil capitalista alcançasse um patamar elevado. Nessas condições, se no Brasil existem numerosas empresas capitalistas que deverão ser transformadas em propriedade social, por outro lado existem milhões de pequenos produtores e pequenos proprietários cujos meios de produção não é possível estatizar ou mesmo coletivizar imediatamente.
24. A estatização e a coletivização administrativa da pequena produção e da propriedade dos meios de produção, tanto urbana quanto rural, podem ser prejudiciais, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Economicamente porque exigem, para seu controle, a formação de uma pesada máquina burocrática, cuja eficiência é muito discutível, entorpecendo a iniciativa dos pequenos produtores estatizados ou coletivizados e impedindo o aproveitamento de todas as potencialidades para desenvolver mais rapidamente as forças produtivas materiais. A médio prazo, levam a economia à estagnação, criando desequilíbrio entre a produção e o consumo e entre os diversos ramos produtivos.
25. Assim, levando em conta as experiências e as condições do desenvolvimento capitalista brasileiro, provavelmente será necessário e possível, nos primeiros momentos de uma sociedade socialista no Brasil, utilizar diversas e múltiplas formas de propriedade social dos meios de produção – através da estatização e da coletivização por formas cooperativas ou outras – de acordo com o tamanho da empresa, a sua natureza e o setor de produção em que se encaixa e o papel estratégico que desempenha no processo global de produção. Mas continuarão existindo o pequeno produtor individual ou a pequena propriedade familiar, que deverão receber estímulo e amparo, no sentido de evoluir para formas cooperativas de produção.
26. Também, provavelmente, surgirão formas mistas e novas de propriedade dos meios de produção necessárias ao processo de aperfeiçoamento no rumo da completa socialização. Empresas do Estado poderão estabelecer formas diversas de cooperação com empresas coletivas e individuais; empresas individuais poderão cooperar-se para algumas operações produtivas ou de circulação, e assim por diante. Mas só a prática real da economia poderá colocar essas questões de modo claro.
27. A existência dessas formas de propriedade, resultantes de uma expansão não plenamente desenvolvida, também vai exigir diferentes formas de organização do trabalho e uma adequada combinação entre a planificação e a economia mercantil. Muitos confundem as formas de propriedade com as formas de organização do trabalho, o que cria embaraços ao pleno desenvolvimento das potencialidades do trabalho. É plenamente possível que uma empresa estatizada, portanto de propriedade social, tenha um alto grau de autonomia na elaboração de seu plano de produção e na organização interna do trabalho. Assim, controle de propriedade pelo Estado, planejamento estatal, autogestão democrática, distribuição conforme a produção, produção conforme as necessidades estabelecidas pelo Estado e também detectadas no mercado, tudo isso demanda uma combinação global e flexível no sentido de desenvolver as formas produtivas, aprofundar o processo de socialização dos meios de produção, acelerar a produtividade do trabalho e a economicidade da produção e atender às crescentes necessidades materiais e culturais do povo.
28. Nesse sentido, é preciso combater a imagem de que o mercado desaparecerá no dia seguinte em que os trabalhadores estiverem no poder. Enquanto a produção social for limitada, enquanto essa limitação obrigar que continue vigorando o ganho segundo o trabalho e não conforme as necessidades, isso significará que os trabalhadores continuarão tendo que trabalhar como uma obrigação de sobrevivência e significará que a sociedade ainda não pode se ver livre do mercado. Evidentemente, no socialismo poderão desaparecer os excessos do consumismo burguês, mas isso não significa que as massas deixarão de consumir ou deixarão de desejar possuir todos os bens que melhorem as suas condições de vida. O socialismo não pretende nivelar o padrão de vida da população por baixo, mas sim por cima, favorecendo o bem-estar e o conforto de todos, e não apenas de minorias privilegiadas.
29. Um projeto socialista deve ser acompanhado da afirmação de idéias e valores que sustentem uma atuação transformadora em todas as esferas da sociedade e tenham consistência para fundamentar a construção de uma nova legitimidade, contraposta à burguesa. Isso tem um peso fundamental na medida em que as propostas políticas (num sentido estrito que pode-se dar à expressão, como ligadas à disputa dos rumos do Estado) constituem apenas o esqueleto das idéias que coesionam um grupo social e têm que ser reforçadas e completadas no sentido de uma visão de mundo global. O projeto socialista deve incorporar as perspectivas colocadas por diferentes movimentos sociais que combatem opressões específicas – como das mulheres, dos negros, das nações indígenas etc. – indispensáveis para golpear importantes pilares da dominação exercida pela burguesia; deve engajar em profundidade a maioria da população brasileira num processo de transformação do País e construir uma sociedade efetivamente nova; deve, também, englobar movimentos de caráter cultural, nacional ou ambiental; e deve, por fim, assumir formas de contestação de mecanismos não-estatais de dominação burguesa, mas que são vitais para a reprodução da ideologia e dos valores fundamentais da burguesia, entre outros elementos, traduzindo em atividade política concreta e questionamento, por exemplo, do monopólio burguês dos meios de comunicação de massa. Esse conjunto de percepções constituem componentes indispensáveis, hoje, à constituição de uma visão de mundo e de uma prática política efetivamente libertária. O socialismo se tornará um propósito muito mais poderoso e influente se for mais do que uma democracia política e econômica, e se passar a ser compreendido como um novo modo de vida, baseado numa visão de mundo profundamente crítica e humanista, qualitativamente superior a tudo que o capitalismo pode oferecer. Algo que possa responder a toda uma série de necessidades sentidas, em graus variados, por todos. Isso pressupõe a difusão de uma perspectiva realmente emancipadora, reforçando a credibilidade das massas trabalhadoras no ideal libertário socialista.
30. O socialismo almejado deve também estar ligado à idéia de que essa luta é internacional. Essa é uma dimensão da política socialista que o PT deve assumir, num momento em que a internacionalização do capital e da política imperialista são maiores do que nunca e numa situação em que ela tem e terá uma grande importância para o destino da transformação socialista no Brasil. Isso já pode ser percebido claramente, hoje, quando recebemos o impulso positivo da revolução da América Central, em particular na Nicarágua.
31. Tais pontos, evidentemente, realçam ainda mais as questões da democracia no socialismo, ou o problema da liberdade numa sociedade que se pretende tornar igualitária. Há sempre o risco de um descompasso entre o avanço da estrutura econômica e o ritmo da democratização da superestrutura. Resistências maiores ou menores da burguesia podem conduzir a processos de centralização que retardem ou conturbem a consolidação da plena democracia. Mas, mesmo com tudo isso, deve ser reafirmada a relação indissolúvel entre democracia e socialismo. Formas de controle popular e operário, que precisam ser incentivadas desde logo, como os conselhos populares e as comissões de fábrica, por exemplo, bem como as variadas formas de poder de base, são fundamentais para o projeto futuro – na medida em que evoluam como meios, efetivos e eficazes, para determinação da correlação de forças pró-democracia na sociedade. Nesse sentido, vale lembrar que o poder, para o socialismo, não apenas se toma, mas se constrói na luta concreta do dia-a-dia, desde já.
32. A democracia, no socialismo, deve ser entendida como a socialização dos meios de produção e também dos mecanismos de poder entre os trabalhadores. Isto significa ser favorável à liberdade de associação e organização, à livre expressão de idéias, à liberdade de culto, ao direito social à comunicação e à liberdade política, partidária e sindical. Aos trabalhadores caberá a tarefa de institucionalizar o Estado socialista através de um processo constituinte livre e democrático, que garanta direitos e liberdade e que também assegure, dentro da nova legalidade, instrumentos e meios de defesa da sociedade. Em resumo: o Brasil terá de encontrar os seus próprios caminhos para chegar ao socialismo e as suas próprias maneiras de construir a sociedade socialista. Caminhos e maneiras que são determinados menos por princípios gerais ou por nossos desejos e mais pelas condições reais e concretas que as classes trabalhadoras irão encontrando e modificando, com ação política organizada, na luta por sua libertação.
33. O PT nasceu e se desenvolve em conjuntura histórica de crescimento das lutas de libertação em todo o mundo. Exemplo destacado deste processo é a Revolução Nicaragüense e a luta que os povos da América Central travam contra o imperialismo norte-americano. A emergência popular da África Negra, a queda de Ferdinando Marcos, nas Filipinas, e de “Baby Doc”, no Haiti, são outros tantos exemplos de avanço democrático e socialista no cenário internacional. Um dos compromissos mais caros ao PT é exatamente a solidariedade com as lutas de outros povos. Solidariedade encarnada, de atos e não apenas de discurso. Por isso, devemos incrementar entre os militantes petistas o conhecimento das lutas de libertação e/ou socialistas dos diversos países. Além disso, cada diretório, cada núcleo, cada órgão petista deve, na medida de suas possibilidades, contribuir, em seu próprio espaço de atividades, para a execução desta diretriz nacional. Ajudando a denunciar os crimes da ditadura chilena, a repressão ao Solidariedade na Polônia, colaborando nas campanhas de ajuda material à Nicarágua, a El Salvador etc. Em uma palavra: defendendo os direitos humanos, individuais ou coletivos, onde quer que eles sejam desrespeitados e apoiando os movimentos democráticos e socialistas de todos os quadrantes.
34. O Partido dos Trabalhadores renova o seu Diretório Nacional e aprova o correspondente Plano de Ação Política e Organizativa para o Período de 1986/87/88 num momento particularmente crucial da conjuntura econômica, social, política e institucional do País. A tentativa de ruptura democrática com o Regime Militar em 1984, por meio da campanha das Diretas – e da qual grande parte da população participou ativamente –, foi desvirtuada e, mesmo, traída pelos interesses comuns dos vários setores da burguesia, que, diante da fragilidade das forças populares, conseguiram unificar-se e cooptar parcelas da classe média e dos próprios trabalhadores para seu projeto de transição conservadora e conciliadora. A expressão político-partidária dessa aliança burguesa, a Aliança Democrática, já sofreu avanços e recuos, e revela, nas suas dissidências eleitorais, a persistência de contradições entre os setores da burguesia. Apesar disso, porém, a classe dominante vem conseguindo, com relativo êxito, manter sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade, e levar a cabo uma série de reformas parciais nos planos econômico e social, que visam conservar e consolidar o desenvolvimento do regime capitalista, através de concessões paliativas destinadas a acalmar os setores mais combativos e protelar crises e enfrentamentos mais radicais. A iminência da instalação de um Congresso Constituinte e da elaboração da futura Constituição torna este momento mais significativo: trata-se, para a burguesia, de assegurar, também no plano jurídico-institucional, a hegemonia que ela vem tentando construir nos planos econômico, social e político. Assim, o exame apurado desta nova conjuntura, bastante diferente daquela que marcou os anos de Regime Militar, e mesmo do momento de pico da transição (1984/85), é da maior importância para que o PT defina com clareza suas tarefas políticas e organizativas para o futuro imediato.
16. A projeção dos delineamentos gerais de uma futura sociedade socialista no Brasil, tanto quanto do processo de transformações para se chegar a ela, exige o concurso de três vertentes de conhecimentos, que precisam ser adequadamente combinadas e articuladas: o estudo sistemático, objetivo e aprofundado da realidade concreta do Brasil, nas suas dimensões histórica, social, econômica, cultural, política e institucional; a teorização da prática social dos movimentos sociais brasileiros, notadamente o popular, o sindical e o político-partidário, fonte indispensável para a apreensão concreta do que e do como fazer histórico cotidiano nas condições brasileiras; e a avaliação crítica das contribuições teóricas dos que pensaram a construção do socialismo, pelo seu cotejamento com as experiências concretas já tentadas em vários países de todo o mundo nestes últimos cem anos. O resultado desse esforço há de ser a imagem de um socialismo não “livresco”, nem de “gabinete”, nem de “cúpula”, nem “importado”, nem “retórico”, nem “imposto” etc., mas sim de um socialismo nascido da realidade brasileira, pensado e construído a partir da vontade e das ações das classes trabalhadoras, nas condições de necessidade e de possibilidade que essas mesmas classes irão modificando com sua ação concreta.
O caminho para o socialismo
17. Como contribuição para esse esforço, é possível desde já dizer que, provavelmente, o processo de transformação – isto é, o caminho para o socialismo no Brasil – será modificado, assumirá mil formas de manifestações, terá avanços e recuos e será marcado por um eixo central básico, constituído de grandes e cada vez mais freqüentes e intensas ações políticas de massa, auxiliadas por todas as formas de luta da classe trabalhadora – da participação em campanhas eleitorais às greves e aos enfrentamentos com a burguesia e com o Estado. Nesse sentido, é importante reconhecer que no atual estágio, e tendo em vista as observações da 1ª Parte deste documento, a classe trabalhadora tem ainda pela frente um longo e dificultoso processo de acumulação de forças e fortalecimento de sua organização, mas que terá de combinar, desde já, conquistas reais no plano político, econômico e social, que lhe permitam avançar no caminho.
18. A conscientização, a organização e a acumulação de forças da classe trabalhadora passa, necessariamente, por um processo de integração e unificação de seus diversos setores e frações num projeto histórico e político comum, em que sejam levados em conta tanto os objetivos finais – a construção do socialismo – quanto as peculiaridades e os conflitos que hoje distinguem, e às vezes separam, aqueles setores e frações. Assim, só é possível conquistar, para esse projeto comum, o apoio e a participação das grandes camadas da pequena burguesia rural e urbana, na luta pela radical transformação da sociedade rumo ao socialismo, no Brasil, se forem asseguradas a tais camadas condições reais do progresso social – sem ameaças a seus limitados meios de produção.
19. Estas considerações permitem, desde já, também, delimitar as linhas gerais e o caráter das alianças que serão necessárias e possíveis no processo de transformações no rumo do socialismo. Alianças e acordos serão necessários, e indispensáveis, entre o conjunto heterogêneo de forças políticas e sociais que atuam no interior das classes trabalhadoras, e que, cada uma a seu modo, representam com maior ou menor grau de legitimidade interesses e valores setoriais e conjunturais dos diversos componentes da classe. Por outro lado, é impossível supor alianças estratégicas com a burguesia e com as forças políticas que sustentam a dominação e a hegemonia da classe burguesa e a perpetuação do sistema capitalista. Certamente, em determinadas conjunturas, pode-se tornar imprescindível fazer acordos restritos e limitados em torno de pontos definidos, concretos e objetivos, com forças que não lutam pelo socialismo, mas é necessário abandonar de vez a ilusão de que seja possível manter uma tática antagônica à estratégia, ou de que, com palavras e discursos hábeis, seja viável enganar momentaneamente as forças sociais e políticas contrárias ao socialismo. As experiências históricas do Brasil e de outros países mostram que são os pretensos enganadores que sempre acabam logrados, e que as alianças da classe trabalhadora com a burguesia só favorecem os interesses desta, e atrasam ou impedem o avanço da organização daquela, bem como o caminho para o socialismo.
20. Isso não quer dizer, porém, que a tarefa de construção do socialismo esteja reservada a um só setor, a uma só fração de classe ou a um só partido. Na ampliação do espaço democrático e na criação de condições políticas para avançar no caminho do socialismo, bem como na defesa de conquistas imediatas das classes trabalhadoras, são necessários e possíveis, sim, acordos itemizados e delimitados com forças sociais e político-partidárias, mesmo que essas forças não se proponham o socialismo como objetivo final.
21. Evidentemente, ao Partido dos Trabalhadores caberá um papel estratégico e fundamental na criação dessas condições e na construção do socialismo. Algumas das tarefas concernentes a esse papel serão analisadas em outra parte deste Plano de Ação Política e Organizativa.
A sociedade socialista
22. A análise feita na 1ª Parte deste Plano de Ação também mostra que os elementos do desenvolvimento capitalista brasileiro, mesmo estando muito longe de serem completos, indicam que no processo de construção socialista não se podem seguir mecanicamente os preceitos de substituição imediata, por meios administrativos ou executivos, da propriedade privada dos meios de produção e circulação pela propriedade social; nem substituir prontamente a economia mercantil por formas sociais de distribuição, circulação e consumo; nem implantar uma completa organização planificada da economia. As leis econômicas em ação numa determinada sociedade não podem ser extintas ou modificadas por decretos, mesmo quando esses decretos tenham um considerável respaldo político de massas, como demonstrou a experiência de construção dos países socialistas.
23. No Brasil, ainda não foram esgotadas, pelo desenvolvimento capitalista, as formas econômicas pequeno-burguesas nem a economia mercantil simples. A própria expansão diferenciada do capitalismo e seu grau médio de desenvolvimento não permitiram que a economia mercantil capitalista alcançasse um patamar elevado. Nessas condições, se no Brasil existem numerosas empresas capitalistas que deverão ser transformadas em propriedade social, por outro lado existem milhões de pequenos produtores e pequenos proprietários cujos meios de produção não é possível estatizar ou mesmo coletivizar imediatamente.
24. A estatização e a coletivização administrativa da pequena produção e da propriedade dos meios de produção, tanto urbana quanto rural, podem ser prejudiciais, tanto do ponto de vista econômico quanto político. Economicamente porque exigem, para seu controle, a formação de uma pesada máquina burocrática, cuja eficiência é muito discutível, entorpecendo a iniciativa dos pequenos produtores estatizados ou coletivizados e impedindo o aproveitamento de todas as potencialidades para desenvolver mais rapidamente as forças produtivas materiais. A médio prazo, levam a economia à estagnação, criando desequilíbrio entre a produção e o consumo e entre os diversos ramos produtivos.
25. Assim, levando em conta as experiências e as condições do desenvolvimento capitalista brasileiro, provavelmente será necessário e possível, nos primeiros momentos de uma sociedade socialista no Brasil, utilizar diversas e múltiplas formas de propriedade social dos meios de produção – através da estatização e da coletivização por formas cooperativas ou outras – de acordo com o tamanho da empresa, a sua natureza e o setor de produção em que se encaixa e o papel estratégico que desempenha no processo global de produção. Mas continuarão existindo o pequeno produtor individual ou a pequena propriedade familiar, que deverão receber estímulo e amparo, no sentido de evoluir para formas cooperativas de produção.
26. Também, provavelmente, surgirão formas mistas e novas de propriedade dos meios de produção necessárias ao processo de aperfeiçoamento no rumo da completa socialização. Empresas do Estado poderão estabelecer formas diversas de cooperação com empresas coletivas e individuais; empresas individuais poderão cooperar-se para algumas operações produtivas ou de circulação, e assim por diante. Mas só a prática real da economia poderá colocar essas questões de modo claro.
27. A existência dessas formas de propriedade, resultantes de uma expansão não plenamente desenvolvida, também vai exigir diferentes formas de organização do trabalho e uma adequada combinação entre a planificação e a economia mercantil. Muitos confundem as formas de propriedade com as formas de organização do trabalho, o que cria embaraços ao pleno desenvolvimento das potencialidades do trabalho. É plenamente possível que uma empresa estatizada, portanto de propriedade social, tenha um alto grau de autonomia na elaboração de seu plano de produção e na organização interna do trabalho. Assim, controle de propriedade pelo Estado, planejamento estatal, autogestão democrática, distribuição conforme a produção, produção conforme as necessidades estabelecidas pelo Estado e também detectadas no mercado, tudo isso demanda uma combinação global e flexível no sentido de desenvolver as formas produtivas, aprofundar o processo de socialização dos meios de produção, acelerar a produtividade do trabalho e a economicidade da produção e atender às crescentes necessidades materiais e culturais do povo.
28. Nesse sentido, é preciso combater a imagem de que o mercado desaparecerá no dia seguinte em que os trabalhadores estiverem no poder. Enquanto a produção social for limitada, enquanto essa limitação obrigar que continue vigorando o ganho segundo o trabalho e não conforme as necessidades, isso significará que os trabalhadores continuarão tendo que trabalhar como uma obrigação de sobrevivência e significará que a sociedade ainda não pode se ver livre do mercado. Evidentemente, no socialismo poderão desaparecer os excessos do consumismo burguês, mas isso não significa que as massas deixarão de consumir ou deixarão de desejar possuir todos os bens que melhorem as suas condições de vida. O socialismo não pretende nivelar o padrão de vida da população por baixo, mas sim por cima, favorecendo o bem-estar e o conforto de todos, e não apenas de minorias privilegiadas.
29. Um projeto socialista deve ser acompanhado da afirmação de idéias e valores que sustentem uma atuação transformadora em todas as esferas da sociedade e tenham consistência para fundamentar a construção de uma nova legitimidade, contraposta à burguesa. Isso tem um peso fundamental na medida em que as propostas políticas (num sentido estrito que pode-se dar à expressão, como ligadas à disputa dos rumos do Estado) constituem apenas o esqueleto das idéias que coesionam um grupo social e têm que ser reforçadas e completadas no sentido de uma visão de mundo global. O projeto socialista deve incorporar as perspectivas colocadas por diferentes movimentos sociais que combatem opressões específicas – como das mulheres, dos negros, das nações indígenas etc. – indispensáveis para golpear importantes pilares da dominação exercida pela burguesia; deve engajar em profundidade a maioria da população brasileira num processo de transformação do País e construir uma sociedade efetivamente nova; deve, também, englobar movimentos de caráter cultural, nacional ou ambiental; e deve, por fim, assumir formas de contestação de mecanismos não-estatais de dominação burguesa, mas que são vitais para a reprodução da ideologia e dos valores fundamentais da burguesia, entre outros elementos, traduzindo em atividade política concreta e questionamento, por exemplo, do monopólio burguês dos meios de comunicação de massa. Esse conjunto de percepções constituem componentes indispensáveis, hoje, à constituição de uma visão de mundo e de uma prática política efetivamente libertária. O socialismo se tornará um propósito muito mais poderoso e influente se for mais do que uma democracia política e econômica, e se passar a ser compreendido como um novo modo de vida, baseado numa visão de mundo profundamente crítica e humanista, qualitativamente superior a tudo que o capitalismo pode oferecer. Algo que possa responder a toda uma série de necessidades sentidas, em graus variados, por todos. Isso pressupõe a difusão de uma perspectiva realmente emancipadora, reforçando a credibilidade das massas trabalhadoras no ideal libertário socialista.
30. O socialismo almejado deve também estar ligado à idéia de que essa luta é internacional. Essa é uma dimensão da política socialista que o PT deve assumir, num momento em que a internacionalização do capital e da política imperialista são maiores do que nunca e numa situação em que ela tem e terá uma grande importância para o destino da transformação socialista no Brasil. Isso já pode ser percebido claramente, hoje, quando recebemos o impulso positivo da revolução da América Central, em particular na Nicarágua.
31. Tais pontos, evidentemente, realçam ainda mais as questões da democracia no socialismo, ou o problema da liberdade numa sociedade que se pretende tornar igualitária. Há sempre o risco de um descompasso entre o avanço da estrutura econômica e o ritmo da democratização da superestrutura. Resistências maiores ou menores da burguesia podem conduzir a processos de centralização que retardem ou conturbem a consolidação da plena democracia. Mas, mesmo com tudo isso, deve ser reafirmada a relação indissolúvel entre democracia e socialismo. Formas de controle popular e operário, que precisam ser incentivadas desde logo, como os conselhos populares e as comissões de fábrica, por exemplo, bem como as variadas formas de poder de base, são fundamentais para o projeto futuro – na medida em que evoluam como meios, efetivos e eficazes, para determinação da correlação de forças pró-democracia na sociedade. Nesse sentido, vale lembrar que o poder, para o socialismo, não apenas se toma, mas se constrói na luta concreta do dia-a-dia, desde já.
32. A democracia, no socialismo, deve ser entendida como a socialização dos meios de produção e também dos mecanismos de poder entre os trabalhadores. Isto significa ser favorável à liberdade de associação e organização, à livre expressão de idéias, à liberdade de culto, ao direito social à comunicação e à liberdade política, partidária e sindical. Aos trabalhadores caberá a tarefa de institucionalizar o Estado socialista através de um processo constituinte livre e democrático, que garanta direitos e liberdade e que também assegure, dentro da nova legalidade, instrumentos e meios de defesa da sociedade. Em resumo: o Brasil terá de encontrar os seus próprios caminhos para chegar ao socialismo e as suas próprias maneiras de construir a sociedade socialista. Caminhos e maneiras que são determinados menos por princípios gerais ou por nossos desejos e mais pelas condições reais e concretas que as classes trabalhadoras irão encontrando e modificando, com ação política organizada, na luta por sua libertação.
Política Internacional
33. O PT nasceu e se desenvolve em conjuntura histórica de crescimento das lutas de libertação em todo o mundo. Exemplo destacado deste processo é a Revolução Nicaragüense e a luta que os povos da América Central travam contra o imperialismo norte-americano. A emergência popular da África Negra, a queda de Ferdinando Marcos, nas Filipinas, e de “Baby Doc”, no Haiti, são outros tantos exemplos de avanço democrático e socialista no cenário internacional. Um dos compromissos mais caros ao PT é exatamente a solidariedade com as lutas de outros povos. Solidariedade encarnada, de atos e não apenas de discurso. Por isso, devemos incrementar entre os militantes petistas o conhecimento das lutas de libertação e/ou socialistas dos diversos países. Além disso, cada diretório, cada núcleo, cada órgão petista deve, na medida de suas possibilidades, contribuir, em seu próprio espaço de atividades, para a execução desta diretriz nacional. Ajudando a denunciar os crimes da ditadura chilena, a repressão ao Solidariedade na Polônia, colaborando nas campanhas de ajuda material à Nicarágua, a El Salvador etc. Em uma palavra: defendendo os direitos humanos, individuais ou coletivos, onde quer que eles sejam desrespeitados e apoiando os movimentos democráticos e socialistas de todos os quadrantes.
A nova conjuntura
34. O Partido dos Trabalhadores renova o seu Diretório Nacional e aprova o correspondente Plano de Ação Política e Organizativa para o Período de 1986/87/88 num momento particularmente crucial da conjuntura econômica, social, política e institucional do País. A tentativa de ruptura democrática com o Regime Militar em 1984, por meio da campanha das Diretas – e da qual grande parte da população participou ativamente –, foi desvirtuada e, mesmo, traída pelos interesses comuns dos vários setores da burguesia, que, diante da fragilidade das forças populares, conseguiram unificar-se e cooptar parcelas da classe média e dos próprios trabalhadores para seu projeto de transição conservadora e conciliadora. A expressão político-partidária dessa aliança burguesa, a Aliança Democrática, já sofreu avanços e recuos, e revela, nas suas dissidências eleitorais, a persistência de contradições entre os setores da burguesia. Apesar disso, porém, a classe dominante vem conseguindo, com relativo êxito, manter sua hegemonia sobre o conjunto da sociedade, e levar a cabo uma série de reformas parciais nos planos econômico e social, que visam conservar e consolidar o desenvolvimento do regime capitalista, através de concessões paliativas destinadas a acalmar os setores mais combativos e protelar crises e enfrentamentos mais radicais. A iminência da instalação de um Congresso Constituinte e da elaboração da futura Constituição torna este momento mais significativo: trata-se, para a burguesia, de assegurar, também no plano jurídico-institucional, a hegemonia que ela vem tentando construir nos planos econômico, social e político. Assim, o exame apurado desta nova conjuntura, bastante diferente daquela que marcou os anos de Regime Militar, e mesmo do momento de pico da transição (1984/85), é da maior importância para que o PT defina com clareza suas tarefas políticas e organizativas para o futuro imediato.
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I - O estágio de desenvolvimento do capitalismo no Brasil (1 a 15).
Parte I do Preâmbulo da resolução "Plano de ação política e organizativa do Partido dos Trabalhadores para o período 1986/87/88" , aprovada no 4º Encontro Nacional do PT, de 1986.
1. O capitalismo encontra-se num alto nível de desenvolvimento no Brasil, neste final do século XX. Todavia, o capitalismo expandiu-se aqui de forma regionalmente muito desigual. No centro-sul e no sul do País há um capitalismo relativamente concentrado, que, principalmente em São Paulo, alcançou um razoável grau de centralização. Mas no resto do Brasil o capitalismo está disperso por pequenas empresas, com algumas poucas exceções, e aproveita-se, em medida considerável, de formas atrasadas de produção. Em muitas regiões chega a predominar a economia mercantil simples e não a economia mercantil capitalista. Mesmo nas áreas desenvolvidas é bastante disseminada a existência de cerca de 2,5 milhões de pequenas empresas familiares, industriais e comerciais, além de uma agricultura de pequenos produtores, que contrasta com as agropecuárias capitalistas e os latifúndios.
2. Esse tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil expandiu, do ponto de vista social, uma diversificada camada de assalariados urbanos e rurais na indústria, no comércio, nos serviços em geral e na agricultura, incluindo aí uma pequena burguesia de extensão razoável. Além disso, apesar do processo de expropriação a que foram e continuam sendo submetidos os camponeses e os pequenos e médios proprietários urbanos, essas camadas cresceram em termos absolutos, acompanhando o aumento da população. A pequena burguesia proprietária, incluindo donos de pequenas empresas industriais, comerciais e de serviços (familiares e com alguns assalariados), autônomos e camponeses, abrange uma considerável massa da população brasileira.
3. O capitalismo brasileiro desenvolveu-se de forma subordinada e dependente do capitalismo internacional, tanto com a penetração do capital estrangeiro no País, quanto com a quase completa dependência científica e tecnológica. A penetração capitalista estrangeira, sob a forma de investimentos diretos e empréstimos, colocou, por um lado, os setores fundamentais da economia brasileira nas mãos das multinacionais e, por outro, transformou o País no maior devedor do mundo, deixando-o à mercê dos interesses do capital financeiro internacional.
4. Acompanhando esse desenvolvimento, e como fenômeno intimamente a ele vinculado, os últimos cem anos foram marcados pela formação das atuais classes sociais brasileiras, que tendem, cada vez mais, a confirmar a estrutura de classes de uma sociedade capitalista, e que sofreram alterações impostas por condições históricas e culturais próprias e pelas características peculiares das diversas regiões geoeconômicas em que o País se divide.
5. Assim, é possível perceber hoje, na sociedade brasileira, a existência de uma poderosa classe burguesa, originária dos antigos senhores de terra da época imperial e que foi, gradativamente, incorporando e integrando setores mercantis e comerciais, o setor industrial (1930), o setor latifundiário e financeiro (1950), o setor de serviços e de comunicação, bem como o setor de monopolização e internacionalização do capital (1964) etc. Não obstante alguns dos setores integrantes da burguesia brasileira apresentarem divergências e conflitos entre si em determinados períodos conjunturais, eles têm se mostrado capazes de integração e unificação ideológica e política em momentos de crise, como o mostram a Revolução de 30, a Redemocratização de 1945, a implantação da Ditadura Militar em 1964 e, mais recentemente, a superação do risco de uma ruptura democrática e a conquista de uma relativa hegemonia por meio da transição conservadora (1984).
6. No campo oposto, também foram se formando, pouco a pouco e com enormes dificuldades, as classes trabalhadoras no Brasil. Ao contrário da burguesia, porém, as classes trabalhadoras brasileiras ainda não conseguiram integrar e unificar de uma forma satisfatória os seus diversos setores, de origem e história diferenciados, e que têm tido papéis sociais e políticos distintos, em grande parte como resultado do desigual desenvolvimento do capitalismo. É possível conceber as classes trabalhadoras do Brasil de hoje como sendo constituídas de três grandes setores: a classe média (rural e urbana), os assalariados urbanos (com uma fração que se destaca dos demais – a classe operária) e os assalariados do campo.
7. A classe média começa a se formar no período colonial e – ao longo de surtos e saltos recentes (1920/1930, 1950/1960, 1964/1970) – sofre grandes transformações, tanto em termos étnicos como demográficos, econômicos, sociais, políticos e culturais. Hoje, ela é constituída de uma gama aparentemente heterogênea de tipos sociais, que vão desde o produtor agrícola individual ou familiar, o micro e o pequeno empresário comercial ou industrial, o trabalhador autônomo, o profissional de nível superior empregado no Estado ou na empresa privada, o trabalhador intelectual das áreas de serviços e comunicações, o trabalhador manual com preparo técnico e salário diferenciado em relação à massa operária, até os estudantes e parte do clero e do pessoal subalterno das Forças Armadas etc. Apesar da extrema heterogeneidade, essa classe média tem em comum a circunstância de que também sofre, por parte da burguesia, exploração econômica e opressão política e ideológica, embora em graus diferenciados, e de forma às vezes distinta do nível de exploração e opressão a que são submetidos os demais trabalhadores assalariados da cidade e do campo. Essa identidade comum não tem sido suficiente, contudo, para dar à classe média um projeto histórico e ideológico único, e freqüentemente seus diversos setores e seus milhões de integrantes são cooptados pela burguesia, tanto econômica como politicamente, mais do que ela mesma tem optado pelas posições e propostas dos demais trabalhadores assalariados. Além de tudo isso, a classe média brasileira sofre, de maneira marcante, as diferenças regionais, e enquanto é mais presente e atuante no centro-sul, ou nas capitais, é mais rarefeita e desorganizada no interior, ou no norte e nordeste.
8. Os trabalhadores assalariados urbanos, constituídos por descendência de imigrantes estrangeiros, pela proletarização da classe média rural e urbana ou pela incorporação de parte dos trabalhadores rurais que migram para as cidades, vêm tendo um acentuado desenvolvimento na estrutura social brasileira desde o último quartel do século XIX. Seu volume cresce à medida em que se desenvolve a sociedade capitalista, com a expansão do setor industrial, o surgimento e a ampliação de atividades de serviços e comunicações, o crescimento da rede escolar e da rede financeira e bancária, a disseminação das construções, dos meios de transportes etc. A classe operária, como fração estratégica desse setor e de todo o conjunto das classes trabalhadoras – pelo seu papel na produção e na reprodução para a acumulação de mais-valia, sustentáculo de todo o sistema capitalista – também vem se expandindo, no sentido de que, hoje em dia, está presente, embora em graus diferenciados, em praticamente todo o território nacional.
9. Os assalariados do campo diferenciam-se dos urbanos não apenas pelo volume consideravelmente menor que esse contingente ocupa no processo de produção, mas também pelas condições de trabalho, significativamente inferiores às que, em geral, vigem nas cidades. Além disso, os assalariados rurais também se distinguem de certas camadas da classe média rural, que dispõem de algum tipo de meio de produção, integral ou compartilhadamente. Muitas vezes, o trabalhador assalariado do campo não se distingue do pequeno ou mesmo médio produtor agrícola, em termos de condição de trabalho e de vida e, dependendo da região do País e das características da produção agrária, o produtor sem terra tem nível de vida mais precário do que o assalariado rural, mesmo temporário. É comum, em certas regiões do País, a transição sazonal entre um setor e outro, fazendo com que o pequeno produtor se transforme no assalariado do produtor médio ou grande.
10. Além das classes trabalhadoras, vêm tendo crescente presença na estrutura social brasileira, principalmente nas cidades, camadas marginalizadas que não encontram lugar no mercado de trabalho ou dele são expulsas, tanto pelo desemprego estrutural quanto pelo conjuntural, que sofreu grande elevação nos últimos anos. Essas camadas marginalizadas de trabalhadores, não conseguindo entrar ou reentrar no mercado de trabalho urbano ou rural, acabam engrossando o banditismo, a prostituição, a violência, o tráfico de drogas e outras formas anti-sociais de sobrevivência, cujas principais vítimas são os próprios trabalhadores assalariados e as camadas inferiores da classe média.
11. Em termos de consciência de classe, organização associativa e política e criação de instrumentos de defesa, resistência ou luta, as classes sociais brasileiras também têm tido desenvolvimento extremamente desigual. A burguesia, evidentemente, pela sua própria situação de classe dominante, sempre teve as melhores condições para fortalecer a sua consciência e a sua organização, bem como para desenvolver e aplicar seus projetos históricos e para criar instrumentos de dominação econômica, militar, política e ideológica capazes de manter, reforçar e perpetuar sua permanência no poder. A história dos últimos cem anos é, em parte, a história do crescimento e do desenvolvimento do Estado burguês, isto é, do Estado da classe dominante no sistema capitalista. O Estado brasileiro destes últimos anos do século XX é um Estado moderno, poderoso, aparelhado material e culturalmente; ramifica-se em ministérios, órgãos, repartições e instituições que detêm grande conhecimento concreto da realidade brasileira, bem como os mecanismos para interferir e alterar essa realidade em seu benefício, vale dizer, em benefício da classe burguesa. No campo das estatísticas, da ciência e da tecnologia, das telecomunicações e da comunicação social, do poder policial e militar, dos recursos materiais e dos recursos humanos – estes, em grande parte, recrutados na classe média de formação universitária ou técnica – o Estado brasileiro é um instrumento da classe burguesa que não pode ser ignorado nem minimizado. Além disso, o Estado, em nome da burguesia, controla direta ou indiretamente grande parte da rede educacional e das atividades culturais e artísticas, da comunicação social (rádio, TV, imprensa etc.), dos sindicatos, federações e confederações, de numerosas entidades da sociedade civil. A burguesia tem, ainda, hegemonia ou predominância significativa nas universidades, nas instituições científicas e técnicas, na maior parte dos serviços públicos, cada vez mais explorados por empresas privadas ou mistas, e em numerosas entidades associativas e representativas.
12. A classe média brasileira, em grande parte por causa de suas características híbridas, tem graus variados de consciência e organização. Nos centros urbanos, a classe média, por si ou, às vezes, em conjunto com forças das Igrejas e dos partidos políticos, tem conseguido organizar-se através de movimentos de idéias e da criação de entidades associativas. Tais movimentos e entidades revelam sua fragilidade, contudo, nos períodos conjunturais de caráter autoritário (Estado Novo, 1937/45; Ditadura Militar, 1964/84), em que praticamente desaparecem, para tentar reaparecer nos períodos de normalidade. Nos últimos anos, tem crescido a organização da classe média através de entidades associativas e representativas, movimentos de reivindicação ou resistência, participação na vida político-partidária e acesso ao Poder Legislativo.
13. As tentativas de conscientização e organização dos trabalhadores urbanos e do campo sempre foram duramente reprimidas pela burguesia, através do Estado e de outras instituições políticas e sociais. Após um período inicial (final do século XIX até o final das duas primeiras décadas deste século), em que houve grande e intensa mobilização operária, com forte predominância anarquista, proliferação de entidades sindicais livres de todo tipo, centenas de manifestações e greves, expansão da imprensa proletária e revolucionária, realização de congressos e conferências, criação embrionária de uma central nacional e várias regionais, as lutas dos trabalhadores sofreram um descenso. A unificação dos setores agrários e industrial da burguesia em 1930, com o enquadramento do movimento operário nas malhas do Estado burguês, aliado ao populismo e ao fascismo inerente ao Governo Vargas, à repressão do Estado Novo, à legislação sindical atrelada [ao Estado] e às fragilidades das correntes comunistas e socialistas da época acentuaram as dificuldades de formação e organização da classe trabalhadora. Em 1945, com a queda da Ditadura Vargas e o período chamado de Redemocratização, abriram-se algumas perspectivas de avanço do movimento operário, apesar da manutenção do controle do Estado sobre o sindicalismo, auxiliado pelo uso seletivo da repressão, pelo populismo e pela política de aliança com a burguesia, levada a efeito por correntes de esquerda, principalmente o PC. Não obstante, no final da década de 1950 e começo da década de 1960, o movimento operário e sindical urbano acumulava forças no sentido de um salto de qualidade, organizativo e político; essas forças, contudo, não foram suficientes para opor qualquer resistência séria à implantação da ditadura em 1964 e, até meados dos anos 70, os trabalhadores urbanos não conseguem se reorganizar de maneira significativa. A partir de 1974, crises internas no bloco dominante, o esgotamento do modelo econômico, a insatisfação crescente da população, foram criando condições para o surgimento de reivindicações, movimentos e entidades em setores da classe média e dos trabalhadores urbanos (artistas, intelectuais, estudantes, jornalistas, professores), bem como nos bairros das favelas e das periferias, com o amparo de setores da Igreja Católica. Em 1978, irrompe a combatividade de setores de ponta da classe operária, principalmente na região do ABC e, a partir daí, foram se multiplicando as manifestações de conscientização, de organização e de luta do proletariado: greves, passeatas, manifestações, criação de entidades associativas e representativas, substituição de diretorias sindicais pelegas por oposições combativas, congressos estaduais e nacionais e criação de centrais sindicais.
14. Os assalariados do campo sempre tiveram maior dificuldade que os da cidade para se organizarem, em grande parte pelas próprias características da multiplicidade das formas de relações de propriedade e de trabalho no campo, em parte pelo alto grau de opressão e repressão exercidas pelos senhores de terra. Não obstante, na década de 1950 surgem sinais de conscientização mais agressiva e tentativas de organização independente, como as Ligas Camponesas. A Contag, surgida em 1962, vai exercer papel significativo na aglutinação dos trabalhadores rurais, mas a ditadura de 64 também vai destruir o que havia de embrionário no movimento camponês, e só nos últimos anos, ao lado do aumento da sindicalização rural (oficial), os trabalhadores sem terra estão começando a se organizar. Apesar da ausência de uma forte e extensa organização camponesa, os conflitos no campo vêm se amiudando e, não raro, assumindo caráter armado e violento.
15. O quadro, resumidamente traçado acima, do desenvolvimento de certos traços do capitalismo no Brasil, da formação de sua estrutura social e do aparecimento dos avanços e recuos de diversas forças sociais que compõem essa estrutura, mostra uma inegável situação de luta de classes. Há momentos em que essa luta de classes, aparentemente, passa para segundo plano. Isso acontece por força do aumento da repressão ou nos períodos conjunturais autoritários em que o setor burguês que domina o Estado atrai contra si uma espécie de “aliança” transitória entre as classes (1937/45, 1964/84), o que também constitui, no fundo, uma particular forma de luta de classes. Mas assim que esses períodos começam a mostrar sinais de desaparecimento, a luta de classes – que permanecera latente e oculta – ressurge à tona com nitidez. É o que está ocorrendo no atual período conjuntural, e que será analisado com mais detalhes adiante. Como conclusão desta análise, é possível dizer que o capitalismo no Brasil [se] desenvolve de maneira desigual e subordinada ao imperialismo, com uma burguesia e um Estado burguês modernos, organizados e aparelhados em luta contra uma classe trabalhadora em diferentes graus de organização: a classe média, de contornos ambíguos e híbridos, semi-organizada, e o proletariado urbano e rural em crescente organização, embora ainda frágil. Apesar do seu grau de desenvolvimento e modernidade, a burguesia e o Estado não têm conseguido resolver as contradições fundamentais do desenvolvimento do conjunto da sociedade e, por isso, apelam para a força repressiva em situações de crise, que procuram evitar com medidas superficiais e paliativas destinadas a acalmar ou cooptar setores sociais mais reivindicativos. Mas a superação definitiva da exploração e da opressão sobre o povo brasileiro não se dará com simples reformas superficiais e paliativas, mas sim com a ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de uma sociedade sem classes, igualitária, que, por meio da socialização dos principais meios de produção, vise a abundância material para atender às necessidades materiais, sociais e culturais de todos e de cada um de seus membros, ou seja, a construção do socialismo. E, embora ainda não esteja colocada para o conjunto da classe trabalhadora a consciência dessa necessidade, é possível afirmar que o estágio do desenvolvimento do capitalismo, da formação das classes e do grau de luta entre as classes, no Brasil, já apresentam as condições necessárias para as lutas que permitam um acúmulo de forças, ampliem o espaço democrático, assegurem e intensifiquem os avanços e as conquistas populares e, ainda mais, criem as brechas, os caminhos e as pontes capazes de conduzir às transformações indispensáveis na direção da construção de uma sociedade socialista.
Capitalismo brasileiro
1. O capitalismo encontra-se num alto nível de desenvolvimento no Brasil, neste final do século XX. Todavia, o capitalismo expandiu-se aqui de forma regionalmente muito desigual. No centro-sul e no sul do País há um capitalismo relativamente concentrado, que, principalmente em São Paulo, alcançou um razoável grau de centralização. Mas no resto do Brasil o capitalismo está disperso por pequenas empresas, com algumas poucas exceções, e aproveita-se, em medida considerável, de formas atrasadas de produção. Em muitas regiões chega a predominar a economia mercantil simples e não a economia mercantil capitalista. Mesmo nas áreas desenvolvidas é bastante disseminada a existência de cerca de 2,5 milhões de pequenas empresas familiares, industriais e comerciais, além de uma agricultura de pequenos produtores, que contrasta com as agropecuárias capitalistas e os latifúndios.
2. Esse tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil expandiu, do ponto de vista social, uma diversificada camada de assalariados urbanos e rurais na indústria, no comércio, nos serviços em geral e na agricultura, incluindo aí uma pequena burguesia de extensão razoável. Além disso, apesar do processo de expropriação a que foram e continuam sendo submetidos os camponeses e os pequenos e médios proprietários urbanos, essas camadas cresceram em termos absolutos, acompanhando o aumento da população. A pequena burguesia proprietária, incluindo donos de pequenas empresas industriais, comerciais e de serviços (familiares e com alguns assalariados), autônomos e camponeses, abrange uma considerável massa da população brasileira.
3. O capitalismo brasileiro desenvolveu-se de forma subordinada e dependente do capitalismo internacional, tanto com a penetração do capital estrangeiro no País, quanto com a quase completa dependência científica e tecnológica. A penetração capitalista estrangeira, sob a forma de investimentos diretos e empréstimos, colocou, por um lado, os setores fundamentais da economia brasileira nas mãos das multinacionais e, por outro, transformou o País no maior devedor do mundo, deixando-o à mercê dos interesses do capital financeiro internacional.
As classes sociais no Brasil
4. Acompanhando esse desenvolvimento, e como fenômeno intimamente a ele vinculado, os últimos cem anos foram marcados pela formação das atuais classes sociais brasileiras, que tendem, cada vez mais, a confirmar a estrutura de classes de uma sociedade capitalista, e que sofreram alterações impostas por condições históricas e culturais próprias e pelas características peculiares das diversas regiões geoeconômicas em que o País se divide.
5. Assim, é possível perceber hoje, na sociedade brasileira, a existência de uma poderosa classe burguesa, originária dos antigos senhores de terra da época imperial e que foi, gradativamente, incorporando e integrando setores mercantis e comerciais, o setor industrial (1930), o setor latifundiário e financeiro (1950), o setor de serviços e de comunicação, bem como o setor de monopolização e internacionalização do capital (1964) etc. Não obstante alguns dos setores integrantes da burguesia brasileira apresentarem divergências e conflitos entre si em determinados períodos conjunturais, eles têm se mostrado capazes de integração e unificação ideológica e política em momentos de crise, como o mostram a Revolução de 30, a Redemocratização de 1945, a implantação da Ditadura Militar em 1964 e, mais recentemente, a superação do risco de uma ruptura democrática e a conquista de uma relativa hegemonia por meio da transição conservadora (1984).
6. No campo oposto, também foram se formando, pouco a pouco e com enormes dificuldades, as classes trabalhadoras no Brasil. Ao contrário da burguesia, porém, as classes trabalhadoras brasileiras ainda não conseguiram integrar e unificar de uma forma satisfatória os seus diversos setores, de origem e história diferenciados, e que têm tido papéis sociais e políticos distintos, em grande parte como resultado do desigual desenvolvimento do capitalismo. É possível conceber as classes trabalhadoras do Brasil de hoje como sendo constituídas de três grandes setores: a classe média (rural e urbana), os assalariados urbanos (com uma fração que se destaca dos demais – a classe operária) e os assalariados do campo.
7. A classe média começa a se formar no período colonial e – ao longo de surtos e saltos recentes (1920/1930, 1950/1960, 1964/1970) – sofre grandes transformações, tanto em termos étnicos como demográficos, econômicos, sociais, políticos e culturais. Hoje, ela é constituída de uma gama aparentemente heterogênea de tipos sociais, que vão desde o produtor agrícola individual ou familiar, o micro e o pequeno empresário comercial ou industrial, o trabalhador autônomo, o profissional de nível superior empregado no Estado ou na empresa privada, o trabalhador intelectual das áreas de serviços e comunicações, o trabalhador manual com preparo técnico e salário diferenciado em relação à massa operária, até os estudantes e parte do clero e do pessoal subalterno das Forças Armadas etc. Apesar da extrema heterogeneidade, essa classe média tem em comum a circunstância de que também sofre, por parte da burguesia, exploração econômica e opressão política e ideológica, embora em graus diferenciados, e de forma às vezes distinta do nível de exploração e opressão a que são submetidos os demais trabalhadores assalariados da cidade e do campo. Essa identidade comum não tem sido suficiente, contudo, para dar à classe média um projeto histórico e ideológico único, e freqüentemente seus diversos setores e seus milhões de integrantes são cooptados pela burguesia, tanto econômica como politicamente, mais do que ela mesma tem optado pelas posições e propostas dos demais trabalhadores assalariados. Além de tudo isso, a classe média brasileira sofre, de maneira marcante, as diferenças regionais, e enquanto é mais presente e atuante no centro-sul, ou nas capitais, é mais rarefeita e desorganizada no interior, ou no norte e nordeste.
8. Os trabalhadores assalariados urbanos, constituídos por descendência de imigrantes estrangeiros, pela proletarização da classe média rural e urbana ou pela incorporação de parte dos trabalhadores rurais que migram para as cidades, vêm tendo um acentuado desenvolvimento na estrutura social brasileira desde o último quartel do século XIX. Seu volume cresce à medida em que se desenvolve a sociedade capitalista, com a expansão do setor industrial, o surgimento e a ampliação de atividades de serviços e comunicações, o crescimento da rede escolar e da rede financeira e bancária, a disseminação das construções, dos meios de transportes etc. A classe operária, como fração estratégica desse setor e de todo o conjunto das classes trabalhadoras – pelo seu papel na produção e na reprodução para a acumulação de mais-valia, sustentáculo de todo o sistema capitalista – também vem se expandindo, no sentido de que, hoje em dia, está presente, embora em graus diferenciados, em praticamente todo o território nacional.
9. Os assalariados do campo diferenciam-se dos urbanos não apenas pelo volume consideravelmente menor que esse contingente ocupa no processo de produção, mas também pelas condições de trabalho, significativamente inferiores às que, em geral, vigem nas cidades. Além disso, os assalariados rurais também se distinguem de certas camadas da classe média rural, que dispõem de algum tipo de meio de produção, integral ou compartilhadamente. Muitas vezes, o trabalhador assalariado do campo não se distingue do pequeno ou mesmo médio produtor agrícola, em termos de condição de trabalho e de vida e, dependendo da região do País e das características da produção agrária, o produtor sem terra tem nível de vida mais precário do que o assalariado rural, mesmo temporário. É comum, em certas regiões do País, a transição sazonal entre um setor e outro, fazendo com que o pequeno produtor se transforme no assalariado do produtor médio ou grande.
10. Além das classes trabalhadoras, vêm tendo crescente presença na estrutura social brasileira, principalmente nas cidades, camadas marginalizadas que não encontram lugar no mercado de trabalho ou dele são expulsas, tanto pelo desemprego estrutural quanto pelo conjuntural, que sofreu grande elevação nos últimos anos. Essas camadas marginalizadas de trabalhadores, não conseguindo entrar ou reentrar no mercado de trabalho urbano ou rural, acabam engrossando o banditismo, a prostituição, a violência, o tráfico de drogas e outras formas anti-sociais de sobrevivência, cujas principais vítimas são os próprios trabalhadores assalariados e as camadas inferiores da classe média.
Conscientização e organização das classes
11. Em termos de consciência de classe, organização associativa e política e criação de instrumentos de defesa, resistência ou luta, as classes sociais brasileiras também têm tido desenvolvimento extremamente desigual. A burguesia, evidentemente, pela sua própria situação de classe dominante, sempre teve as melhores condições para fortalecer a sua consciência e a sua organização, bem como para desenvolver e aplicar seus projetos históricos e para criar instrumentos de dominação econômica, militar, política e ideológica capazes de manter, reforçar e perpetuar sua permanência no poder. A história dos últimos cem anos é, em parte, a história do crescimento e do desenvolvimento do Estado burguês, isto é, do Estado da classe dominante no sistema capitalista. O Estado brasileiro destes últimos anos do século XX é um Estado moderno, poderoso, aparelhado material e culturalmente; ramifica-se em ministérios, órgãos, repartições e instituições que detêm grande conhecimento concreto da realidade brasileira, bem como os mecanismos para interferir e alterar essa realidade em seu benefício, vale dizer, em benefício da classe burguesa. No campo das estatísticas, da ciência e da tecnologia, das telecomunicações e da comunicação social, do poder policial e militar, dos recursos materiais e dos recursos humanos – estes, em grande parte, recrutados na classe média de formação universitária ou técnica – o Estado brasileiro é um instrumento da classe burguesa que não pode ser ignorado nem minimizado. Além disso, o Estado, em nome da burguesia, controla direta ou indiretamente grande parte da rede educacional e das atividades culturais e artísticas, da comunicação social (rádio, TV, imprensa etc.), dos sindicatos, federações e confederações, de numerosas entidades da sociedade civil. A burguesia tem, ainda, hegemonia ou predominância significativa nas universidades, nas instituições científicas e técnicas, na maior parte dos serviços públicos, cada vez mais explorados por empresas privadas ou mistas, e em numerosas entidades associativas e representativas.
12. A classe média brasileira, em grande parte por causa de suas características híbridas, tem graus variados de consciência e organização. Nos centros urbanos, a classe média, por si ou, às vezes, em conjunto com forças das Igrejas e dos partidos políticos, tem conseguido organizar-se através de movimentos de idéias e da criação de entidades associativas. Tais movimentos e entidades revelam sua fragilidade, contudo, nos períodos conjunturais de caráter autoritário (Estado Novo, 1937/45; Ditadura Militar, 1964/84), em que praticamente desaparecem, para tentar reaparecer nos períodos de normalidade. Nos últimos anos, tem crescido a organização da classe média através de entidades associativas e representativas, movimentos de reivindicação ou resistência, participação na vida político-partidária e acesso ao Poder Legislativo.
13. As tentativas de conscientização e organização dos trabalhadores urbanos e do campo sempre foram duramente reprimidas pela burguesia, através do Estado e de outras instituições políticas e sociais. Após um período inicial (final do século XIX até o final das duas primeiras décadas deste século), em que houve grande e intensa mobilização operária, com forte predominância anarquista, proliferação de entidades sindicais livres de todo tipo, centenas de manifestações e greves, expansão da imprensa proletária e revolucionária, realização de congressos e conferências, criação embrionária de uma central nacional e várias regionais, as lutas dos trabalhadores sofreram um descenso. A unificação dos setores agrários e industrial da burguesia em 1930, com o enquadramento do movimento operário nas malhas do Estado burguês, aliado ao populismo e ao fascismo inerente ao Governo Vargas, à repressão do Estado Novo, à legislação sindical atrelada [ao Estado] e às fragilidades das correntes comunistas e socialistas da época acentuaram as dificuldades de formação e organização da classe trabalhadora. Em 1945, com a queda da Ditadura Vargas e o período chamado de Redemocratização, abriram-se algumas perspectivas de avanço do movimento operário, apesar da manutenção do controle do Estado sobre o sindicalismo, auxiliado pelo uso seletivo da repressão, pelo populismo e pela política de aliança com a burguesia, levada a efeito por correntes de esquerda, principalmente o PC. Não obstante, no final da década de 1950 e começo da década de 1960, o movimento operário e sindical urbano acumulava forças no sentido de um salto de qualidade, organizativo e político; essas forças, contudo, não foram suficientes para opor qualquer resistência séria à implantação da ditadura em 1964 e, até meados dos anos 70, os trabalhadores urbanos não conseguem se reorganizar de maneira significativa. A partir de 1974, crises internas no bloco dominante, o esgotamento do modelo econômico, a insatisfação crescente da população, foram criando condições para o surgimento de reivindicações, movimentos e entidades em setores da classe média e dos trabalhadores urbanos (artistas, intelectuais, estudantes, jornalistas, professores), bem como nos bairros das favelas e das periferias, com o amparo de setores da Igreja Católica. Em 1978, irrompe a combatividade de setores de ponta da classe operária, principalmente na região do ABC e, a partir daí, foram se multiplicando as manifestações de conscientização, de organização e de luta do proletariado: greves, passeatas, manifestações, criação de entidades associativas e representativas, substituição de diretorias sindicais pelegas por oposições combativas, congressos estaduais e nacionais e criação de centrais sindicais.
14. Os assalariados do campo sempre tiveram maior dificuldade que os da cidade para se organizarem, em grande parte pelas próprias características da multiplicidade das formas de relações de propriedade e de trabalho no campo, em parte pelo alto grau de opressão e repressão exercidas pelos senhores de terra. Não obstante, na década de 1950 surgem sinais de conscientização mais agressiva e tentativas de organização independente, como as Ligas Camponesas. A Contag, surgida em 1962, vai exercer papel significativo na aglutinação dos trabalhadores rurais, mas a ditadura de 64 também vai destruir o que havia de embrionário no movimento camponês, e só nos últimos anos, ao lado do aumento da sindicalização rural (oficial), os trabalhadores sem terra estão começando a se organizar. Apesar da ausência de uma forte e extensa organização camponesa, os conflitos no campo vêm se amiudando e, não raro, assumindo caráter armado e violento.
15. O quadro, resumidamente traçado acima, do desenvolvimento de certos traços do capitalismo no Brasil, da formação de sua estrutura social e do aparecimento dos avanços e recuos de diversas forças sociais que compõem essa estrutura, mostra uma inegável situação de luta de classes. Há momentos em que essa luta de classes, aparentemente, passa para segundo plano. Isso acontece por força do aumento da repressão ou nos períodos conjunturais autoritários em que o setor burguês que domina o Estado atrai contra si uma espécie de “aliança” transitória entre as classes (1937/45, 1964/84), o que também constitui, no fundo, uma particular forma de luta de classes. Mas assim que esses períodos começam a mostrar sinais de desaparecimento, a luta de classes – que permanecera latente e oculta – ressurge à tona com nitidez. É o que está ocorrendo no atual período conjuntural, e que será analisado com mais detalhes adiante. Como conclusão desta análise, é possível dizer que o capitalismo no Brasil [se] desenvolve de maneira desigual e subordinada ao imperialismo, com uma burguesia e um Estado burguês modernos, organizados e aparelhados em luta contra uma classe trabalhadora em diferentes graus de organização: a classe média, de contornos ambíguos e híbridos, semi-organizada, e o proletariado urbano e rural em crescente organização, embora ainda frágil. Apesar do seu grau de desenvolvimento e modernidade, a burguesia e o Estado não têm conseguido resolver as contradições fundamentais do desenvolvimento do conjunto da sociedade e, por isso, apelam para a força repressiva em situações de crise, que procuram evitar com medidas superficiais e paliativas destinadas a acalmar ou cooptar setores sociais mais reivindicativos. Mas a superação definitiva da exploração e da opressão sobre o povo brasileiro não se dará com simples reformas superficiais e paliativas, mas sim com a ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de uma sociedade sem classes, igualitária, que, por meio da socialização dos principais meios de produção, vise a abundância material para atender às necessidades materiais, sociais e culturais de todos e de cada um de seus membros, ou seja, a construção do socialismo. E, embora ainda não esteja colocada para o conjunto da classe trabalhadora a consciência dessa necessidade, é possível afirmar que o estágio do desenvolvimento do capitalismo, da formação das classes e do grau de luta entre as classes, no Brasil, já apresentam as condições necessárias para as lutas que permitam um acúmulo de forças, ampliem o espaço democrático, assegurem e intensifiquem os avanços e as conquistas populares e, ainda mais, criem as brechas, os caminhos e as pontes capazes de conduzir às transformações indispensáveis na direção da construção de uma sociedade socialista.
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