Capitalismo brasileiro
1. O capitalismo encontra-se num alto nível de desenvolvimento no Brasil, neste final do século XX. Todavia, o capitalismo expandiu-se aqui de forma regionalmente muito desigual. No centro-sul e no sul do País há um capitalismo relativamente concentrado, que, principalmente em São Paulo, alcançou um razoável grau de centralização. Mas no resto do Brasil o capitalismo está disperso por pequenas empresas, com algumas poucas exceções, e aproveita-se, em medida considerável, de formas atrasadas de produção. Em muitas regiões chega a predominar a economia mercantil simples e não a economia mercantil capitalista. Mesmo nas áreas desenvolvidas é bastante disseminada a existência de cerca de 2,5 milhões de pequenas empresas familiares, industriais e comerciais, além de uma agricultura de pequenos produtores, que contrasta com as agropecuárias capitalistas e os latifúndios.
2. Esse tipo de desenvolvimento capitalista no Brasil expandiu, do ponto de vista social, uma diversificada camada de assalariados urbanos e rurais na indústria, no comércio, nos serviços em geral e na agricultura, incluindo aí uma pequena burguesia de extensão razoável. Além disso, apesar do processo de expropriação a que foram e continuam sendo submetidos os camponeses e os pequenos e médios proprietários urbanos, essas camadas cresceram em termos absolutos, acompanhando o aumento da população. A pequena burguesia proprietária, incluindo donos de pequenas empresas industriais, comerciais e de serviços (familiares e com alguns assalariados), autônomos e camponeses, abrange uma considerável massa da população brasileira.
3. O capitalismo brasileiro desenvolveu-se de forma subordinada e dependente do capitalismo internacional, tanto com a penetração do capital estrangeiro no País, quanto com a quase completa dependência científica e tecnológica. A penetração capitalista estrangeira, sob a forma de investimentos diretos e empréstimos, colocou, por um lado, os setores fundamentais da economia brasileira nas mãos das multinacionais e, por outro, transformou o País no maior devedor do mundo, deixando-o à mercê dos interesses do capital financeiro internacional.
As classes sociais no Brasil
4. Acompanhando esse desenvolvimento, e como fenômeno intimamente a ele vinculado, os últimos cem anos foram marcados pela formação das atuais classes sociais brasileiras, que tendem, cada vez mais, a confirmar a estrutura de classes de uma sociedade capitalista, e que sofreram alterações impostas por condições históricas e culturais próprias e pelas características peculiares das diversas regiões geoeconômicas em que o País se divide.
5. Assim, é possível perceber hoje, na sociedade brasileira, a existência de uma poderosa classe burguesa, originária dos antigos senhores de terra da época imperial e que foi, gradativamente, incorporando e integrando setores mercantis e comerciais, o setor industrial (1930), o setor latifundiário e financeiro (1950), o setor de serviços e de comunicação, bem como o setor de monopolização e internacionalização do capital (1964) etc. Não obstante alguns dos setores integrantes da burguesia brasileira apresentarem divergências e conflitos entre si em determinados períodos conjunturais, eles têm se mostrado capazes de integração e unificação ideológica e política em momentos de crise, como o mostram a Revolução de 30, a Redemocratização de 1945, a implantação da Ditadura Militar em 1964 e, mais recentemente, a superação do risco de uma ruptura democrática e a conquista de uma relativa hegemonia por meio da transição conservadora (1984).
6. No campo oposto, também foram se formando, pouco a pouco e com enormes dificuldades, as classes trabalhadoras no Brasil. Ao contrário da burguesia, porém, as classes trabalhadoras brasileiras ainda não conseguiram integrar e unificar de uma forma satisfatória os seus diversos setores, de origem e história diferenciados, e que têm tido papéis sociais e políticos distintos, em grande parte como resultado do desigual desenvolvimento do capitalismo. É possível conceber as classes trabalhadoras do Brasil de hoje como sendo constituídas de três grandes setores: a classe média (rural e urbana), os assalariados urbanos (com uma fração que se destaca dos demais – a classe operária) e os assalariados do campo.
7. A classe média começa a se formar no período colonial e – ao longo de surtos e saltos recentes (1920/1930, 1950/1960, 1964/1970) – sofre grandes transformações, tanto em termos étnicos como demográficos, econômicos, sociais, políticos e culturais. Hoje, ela é constituída de uma gama aparentemente heterogênea de tipos sociais, que vão desde o produtor agrícola individual ou familiar, o micro e o pequeno empresário comercial ou industrial, o trabalhador autônomo, o profissional de nível superior empregado no Estado ou na empresa privada, o trabalhador intelectual das áreas de serviços e comunicações, o trabalhador manual com preparo técnico e salário diferenciado em relação à massa operária, até os estudantes e parte do clero e do pessoal subalterno das Forças Armadas etc. Apesar da extrema heterogeneidade, essa classe média tem em comum a circunstância de que também sofre, por parte da burguesia, exploração econômica e opressão política e ideológica, embora em graus diferenciados, e de forma às vezes distinta do nível de exploração e opressão a que são submetidos os demais trabalhadores assalariados da cidade e do campo. Essa identidade comum não tem sido suficiente, contudo, para dar à classe média um projeto histórico e ideológico único, e freqüentemente seus diversos setores e seus milhões de integrantes são cooptados pela burguesia, tanto econômica como politicamente, mais do que ela mesma tem optado pelas posições e propostas dos demais trabalhadores assalariados. Além de tudo isso, a classe média brasileira sofre, de maneira marcante, as diferenças regionais, e enquanto é mais presente e atuante no centro-sul, ou nas capitais, é mais rarefeita e desorganizada no interior, ou no norte e nordeste.
8. Os trabalhadores assalariados urbanos, constituídos por descendência de imigrantes estrangeiros, pela proletarização da classe média rural e urbana ou pela incorporação de parte dos trabalhadores rurais que migram para as cidades, vêm tendo um acentuado desenvolvimento na estrutura social brasileira desde o último quartel do século XIX. Seu volume cresce à medida em que se desenvolve a sociedade capitalista, com a expansão do setor industrial, o surgimento e a ampliação de atividades de serviços e comunicações, o crescimento da rede escolar e da rede financeira e bancária, a disseminação das construções, dos meios de transportes etc. A classe operária, como fração estratégica desse setor e de todo o conjunto das classes trabalhadoras – pelo seu papel na produção e na reprodução para a acumulação de mais-valia, sustentáculo de todo o sistema capitalista – também vem se expandindo, no sentido de que, hoje em dia, está presente, embora em graus diferenciados, em praticamente todo o território nacional.
9. Os assalariados do campo diferenciam-se dos urbanos não apenas pelo volume consideravelmente menor que esse contingente ocupa no processo de produção, mas também pelas condições de trabalho, significativamente inferiores às que, em geral, vigem nas cidades. Além disso, os assalariados rurais também se distinguem de certas camadas da classe média rural, que dispõem de algum tipo de meio de produção, integral ou compartilhadamente. Muitas vezes, o trabalhador assalariado do campo não se distingue do pequeno ou mesmo médio produtor agrícola, em termos de condição de trabalho e de vida e, dependendo da região do País e das características da produção agrária, o produtor sem terra tem nível de vida mais precário do que o assalariado rural, mesmo temporário. É comum, em certas regiões do País, a transição sazonal entre um setor e outro, fazendo com que o pequeno produtor se transforme no assalariado do produtor médio ou grande.
10. Além das classes trabalhadoras, vêm tendo crescente presença na estrutura social brasileira, principalmente nas cidades, camadas marginalizadas que não encontram lugar no mercado de trabalho ou dele são expulsas, tanto pelo desemprego estrutural quanto pelo conjuntural, que sofreu grande elevação nos últimos anos. Essas camadas marginalizadas de trabalhadores, não conseguindo entrar ou reentrar no mercado de trabalho urbano ou rural, acabam engrossando o banditismo, a prostituição, a violência, o tráfico de drogas e outras formas anti-sociais de sobrevivência, cujas principais vítimas são os próprios trabalhadores assalariados e as camadas inferiores da classe média.
Conscientização e organização das classes
11. Em termos de consciência de classe, organização associativa e política e criação de instrumentos de defesa, resistência ou luta, as classes sociais brasileiras também têm tido desenvolvimento extremamente desigual. A burguesia, evidentemente, pela sua própria situação de classe dominante, sempre teve as melhores condições para fortalecer a sua consciência e a sua organização, bem como para desenvolver e aplicar seus projetos históricos e para criar instrumentos de dominação econômica, militar, política e ideológica capazes de manter, reforçar e perpetuar sua permanência no poder. A história dos últimos cem anos é, em parte, a história do crescimento e do desenvolvimento do Estado burguês, isto é, do Estado da classe dominante no sistema capitalista. O Estado brasileiro destes últimos anos do século XX é um Estado moderno, poderoso, aparelhado material e culturalmente; ramifica-se em ministérios, órgãos, repartições e instituições que detêm grande conhecimento concreto da realidade brasileira, bem como os mecanismos para interferir e alterar essa realidade em seu benefício, vale dizer, em benefício da classe burguesa. No campo das estatísticas, da ciência e da tecnologia, das telecomunicações e da comunicação social, do poder policial e militar, dos recursos materiais e dos recursos humanos – estes, em grande parte, recrutados na classe média de formação universitária ou técnica – o Estado brasileiro é um instrumento da classe burguesa que não pode ser ignorado nem minimizado. Além disso, o Estado, em nome da burguesia, controla direta ou indiretamente grande parte da rede educacional e das atividades culturais e artísticas, da comunicação social (rádio, TV, imprensa etc.), dos sindicatos, federações e confederações, de numerosas entidades da sociedade civil. A burguesia tem, ainda, hegemonia ou predominância significativa nas universidades, nas instituições científicas e técnicas, na maior parte dos serviços públicos, cada vez mais explorados por empresas privadas ou mistas, e em numerosas entidades associativas e representativas.
12. A classe média brasileira, em grande parte por causa de suas características híbridas, tem graus variados de consciência e organização. Nos centros urbanos, a classe média, por si ou, às vezes, em conjunto com forças das Igrejas e dos partidos políticos, tem conseguido organizar-se através de movimentos de idéias e da criação de entidades associativas. Tais movimentos e entidades revelam sua fragilidade, contudo, nos períodos conjunturais de caráter autoritário (Estado Novo, 1937/45; Ditadura Militar, 1964/84), em que praticamente desaparecem, para tentar reaparecer nos períodos de normalidade. Nos últimos anos, tem crescido a organização da classe média através de entidades associativas e representativas, movimentos de reivindicação ou resistência, participação na vida político-partidária e acesso ao Poder Legislativo.
13. As tentativas de conscientização e organização dos trabalhadores urbanos e do campo sempre foram duramente reprimidas pela burguesia, através do Estado e de outras instituições políticas e sociais. Após um período inicial (final do século XIX até o final das duas primeiras décadas deste século), em que houve grande e intensa mobilização operária, com forte predominância anarquista, proliferação de entidades sindicais livres de todo tipo, centenas de manifestações e greves, expansão da imprensa proletária e revolucionária, realização de congressos e conferências, criação embrionária de uma central nacional e várias regionais, as lutas dos trabalhadores sofreram um descenso. A unificação dos setores agrários e industrial da burguesia em 1930, com o enquadramento do movimento operário nas malhas do Estado burguês, aliado ao populismo e ao fascismo inerente ao Governo Vargas, à repressão do Estado Novo, à legislação sindical atrelada [ao Estado] e às fragilidades das correntes comunistas e socialistas da época acentuaram as dificuldades de formação e organização da classe trabalhadora. Em 1945, com a queda da Ditadura Vargas e o período chamado de Redemocratização, abriram-se algumas perspectivas de avanço do movimento operário, apesar da manutenção do controle do Estado sobre o sindicalismo, auxiliado pelo uso seletivo da repressão, pelo populismo e pela política de aliança com a burguesia, levada a efeito por correntes de esquerda, principalmente o PC. Não obstante, no final da década de 1950 e começo da década de 1960, o movimento operário e sindical urbano acumulava forças no sentido de um salto de qualidade, organizativo e político; essas forças, contudo, não foram suficientes para opor qualquer resistência séria à implantação da ditadura em 1964 e, até meados dos anos 70, os trabalhadores urbanos não conseguem se reorganizar de maneira significativa. A partir de 1974, crises internas no bloco dominante, o esgotamento do modelo econômico, a insatisfação crescente da população, foram criando condições para o surgimento de reivindicações, movimentos e entidades em setores da classe média e dos trabalhadores urbanos (artistas, intelectuais, estudantes, jornalistas, professores), bem como nos bairros das favelas e das periferias, com o amparo de setores da Igreja Católica. Em 1978, irrompe a combatividade de setores de ponta da classe operária, principalmente na região do ABC e, a partir daí, foram se multiplicando as manifestações de conscientização, de organização e de luta do proletariado: greves, passeatas, manifestações, criação de entidades associativas e representativas, substituição de diretorias sindicais pelegas por oposições combativas, congressos estaduais e nacionais e criação de centrais sindicais.
14. Os assalariados do campo sempre tiveram maior dificuldade que os da cidade para se organizarem, em grande parte pelas próprias características da multiplicidade das formas de relações de propriedade e de trabalho no campo, em parte pelo alto grau de opressão e repressão exercidas pelos senhores de terra. Não obstante, na década de 1950 surgem sinais de conscientização mais agressiva e tentativas de organização independente, como as Ligas Camponesas. A Contag, surgida em 1962, vai exercer papel significativo na aglutinação dos trabalhadores rurais, mas a ditadura de 64 também vai destruir o que havia de embrionário no movimento camponês, e só nos últimos anos, ao lado do aumento da sindicalização rural (oficial), os trabalhadores sem terra estão começando a se organizar. Apesar da ausência de uma forte e extensa organização camponesa, os conflitos no campo vêm se amiudando e, não raro, assumindo caráter armado e violento.
15. O quadro, resumidamente traçado acima, do desenvolvimento de certos traços do capitalismo no Brasil, da formação de sua estrutura social e do aparecimento dos avanços e recuos de diversas forças sociais que compõem essa estrutura, mostra uma inegável situação de luta de classes. Há momentos em que essa luta de classes, aparentemente, passa para segundo plano. Isso acontece por força do aumento da repressão ou nos períodos conjunturais autoritários em que o setor burguês que domina o Estado atrai contra si uma espécie de “aliança” transitória entre as classes (1937/45, 1964/84), o que também constitui, no fundo, uma particular forma de luta de classes. Mas assim que esses períodos começam a mostrar sinais de desaparecimento, a luta de classes – que permanecera latente e oculta – ressurge à tona com nitidez. É o que está ocorrendo no atual período conjuntural, e que será analisado com mais detalhes adiante. Como conclusão desta análise, é possível dizer que o capitalismo no Brasil [se] desenvolve de maneira desigual e subordinada ao imperialismo, com uma burguesia e um Estado burguês modernos, organizados e aparelhados em luta contra uma classe trabalhadora em diferentes graus de organização: a classe média, de contornos ambíguos e híbridos, semi-organizada, e o proletariado urbano e rural em crescente organização, embora ainda frágil. Apesar do seu grau de desenvolvimento e modernidade, a burguesia e o Estado não têm conseguido resolver as contradições fundamentais do desenvolvimento do conjunto da sociedade e, por isso, apelam para a força repressiva em situações de crise, que procuram evitar com medidas superficiais e paliativas destinadas a acalmar ou cooptar setores sociais mais reivindicativos. Mas a superação definitiva da exploração e da opressão sobre o povo brasileiro não se dará com simples reformas superficiais e paliativas, mas sim com a ruptura radical contra a ordem burguesa e a construção de uma sociedade sem classes, igualitária, que, por meio da socialização dos principais meios de produção, vise a abundância material para atender às necessidades materiais, sociais e culturais de todos e de cada um de seus membros, ou seja, a construção do socialismo. E, embora ainda não esteja colocada para o conjunto da classe trabalhadora a consciência dessa necessidade, é possível afirmar que o estágio do desenvolvimento do capitalismo, da formação das classes e do grau de luta entre as classes, no Brasil, já apresentam as condições necessárias para as lutas que permitam um acúmulo de forças, ampliem o espaço democrático, assegurem e intensifiquem os avanços e as conquistas populares e, ainda mais, criem as brechas, os caminhos e as pontes capazes de conduzir às transformações indispensáveis na direção da construção de uma sociedade socialista.
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